quarta-feira, 23 de abril de 2014

a arder em lume lento

Disseste-me que tinhas uma vocação extraordinária para magoar pessoas. acho que sorri, foi naquele café da meia noite, ou no dia seguinte. Cinco excepções para cinco confissões, foram mais, o bushmills correu como catalisador, ainda que distante. Sorri por reflexo, acreditei que tinhas uma vocação para magoar pessoas, para que o sol te pedisse calor e tu com pequenos estalactites para dar, com um vazio de gruta no peito a sorrir e a derramar o olhar como um manto cravejado de estrelas polares. A distância entre ti e o teu presente era tão grande que eu não podia deixar de acreditar. Vivias nas linhas escritas dos poetas antes de ti, nas cartas que se enviavam, nos telegramas. Vivamos todos aí, e, por engano, tínhamos que lidar com as personagens que sangravam, e a nós tudo nos parecia tão distantes. Na altura tinha 40 e poucos, tu, um pouco menos, ainda hoje um pouco menos ou talvez muito menos. Pouco sabíamos da vida, e isso não interessava. Os nossos dramas eram infinitos, assim como as nossas incertezas, o pendor dramático corroía-nos as insónias e vivamos sem saber que o nó no estômago podia ser desatado. Eu ainda não sei, talvez tu já o saibas mas não me ensinaste como fazer que as páginas escritas passassem a ser a realidade da paisagem à nossa frente. Não havia inocentes, só nós, era nisso que acreditávamos, já sem acreditar, sem nunca acreditar, hipersensibilidades hiperbrutalidade, mas de nós sabíamos o que nos era verdadeiro quando adormecemos por exaustão, dos outros é sempre uma incógnita que nos pede mais do que somos capaz de dar, que nos impele a cortar os olhos e a sacrificar as facas na cintura, com a vã esperança de responder ao que nos é pedido, de conseguir escrever o que os outros querem ler. Nunca capazes de escrever o que fica a arder em lume brando por tanto tempo, pelo tempo necessário para que valha a pena, sempre a considerar isso uma brutalidade encardida de mágoas, as que não temos a coragem de pagar. Partir, quebrar, ser, exultar, gritar com a força dos pulmões, já sem ar, que não somos capazes, que não nos é quente, que não fomos, que não somos, talvez, aquilo que era suposto, uma constante sensação de falha de características para o que queríamos dar, para o sorriso que queríamos alcançar. Existe essa dor dupla de falta de aderência, de olharmos o espelho e não sermos nós os reflectidos, outros talvez, algo melhor que nós, mas não nós, e, no mesmo gesto, nesse mesmo esgar de olhos, ver reflectido o que deveríamos ser e não conseguimos por falta de algo normal.
O pior é que tudo parece conspirar para que o escarlate com que se cobre o peito seja mais lento que o esperado, seja mais escuro, não silve a escuridão mas absorva a dor de não ser o que se queria. Fazer o bem dirias tu, mas fazer o bem é impossível, essa tentativa vã de fazer o bem magoa sempre mais do que era suposto. A ti dá-te certezas; a mim parece-me uma quimera capaz de incendiar as dores mais profundas dos ossos e corroer-nos os olhos, com a incerteza tonta de que se estamos a fazer o bem estaremos sempre protegido das noites de temor. É falso, é tudo uma falsidade, nem a honestidade parece possível, não sem ser desembainhar uma espada carregada de tétano, e nela não habita a certeza de fazer o bem, a honestidade não é bondosa, é uma verdade tão pessoal que ergue barreiras de sangue a arder destinada a magoar todos os que se aproximam. Respeitar e corresponder, esquecer, anular, engolir, fazer o devido, não desiludir. É mais ou menos honesto? Em tempos pensei ter-te dito a verdade, agora já não sei. As nossas dividas avolumam-se e o credor é um homem de preto do qual não conseguimos ver os olhos.
Estás a dizer asneiras. Sabes que as digo sempre. Isso é mentira rapaz, tu és perigoso. Nem sempre. é mentira, sabes bem que o problema não é esse. Nunca sei nada, só a insegurança.
Havia a incerteza da pertença, dizia-te eu, que não havia essa sensação, mesmo que a pertença ficasse no farol que quebra o mar. Tu dizias o contrário, que era a incerteza da incerteza, que te tinha desiludido e fendido os olhos como só um cruzador é capaz. Parecias viver no alugar dos locais, sem a definitiva sensação de serem teus, sem a certeza que era ali que voltavas todas as noites, pois no teu peito parecia sempre haver um lugar que escondias. Era essa duplicidade entre o interior e o exterior que te tirava a certeza de não teres pertença, dizias-me que sim, eu não sei se acreditava. Falava-te da ausência desse interior que não permite que haja exterior ao qual pertencemos e a ti não parecia estranho, fazendo-me acreditar que existia um abismo de rochas violetas entre as tuas pertenças e que uma guerra surda habitava neles, uma guerra que despedaçava os locais de forma tão violenta que te era impossível aceitares que não pertencias. Talvez seja sempre esse o estado de pertencer em pessoas como tu, uma violenta refrega entre o presente e o desajuste do ser. Havia pontes, bem sei que havia pontes, cinzentas de betão descarnado, de betão que deixa os ferros à mostra depois de tanto batido, que tu cruzavas a toda a hora com a vontade, com uma obrigação que era só interna, que te retesava os músculos e te prendia os nervos ao ponto de já não te ser possível falar a não ser contigo mesmo, de seres aquilo que devias, de pagares esses pequenos preços para toda a gente e que na verdade eram dívidas tão volumosas que te esmagavam contra o chão, em que cada passo era um arrastar que esfarelava os joelhos e te retirava o ar dos pulmões. Por meu lado, existia sempre um abismo de onde olhava na imobilidade de não ter para onde correr, de não me terem explicado porque ali estava e onde apenas uma pilha de livros me fazia companhia. Tentei deitar a pilha ao chão muitas vezes, disse-te, para conseguir ver se depois deles havia caminho, mas sempre que eles caiam aparecia o seu dobro, numa constante biblioteca de Borges que não deixava de ser também um dos seus labirintos aprisionadores. Talvez tudo não fosse mais do que um exagerado gosto pelas paisagens grandiosas em estado de degradação melancólica e a realidade fosse apenas a de normalidade para qualquer pessoa, uma pequena disputa entre ser e querer estar.
Não sei se concordo contigo. Porquê? Tens lume? - estende o braço - porque não me parece que todas as pessoas sintam o mesmo. Ou que se sintam tão atormentadas. Ou isso. É sempre mais difícil quando tens 60 anos e tens que te levantar às cinco da manhã para apanhar um autocarro, enquanto cinco pessoas estão atrás de ti ainda levados depois do jantar a fazer horas para as roulottes fecharem.
Falavas-me da honestidade como um dilema tão sofrido que eu não tenho a certeza se percebia completamente. Percebia como reflexo das minhas concepções da honestidade, na certeza que era sempre a melhor via. Debatias-te se seria sempre o melhor, se a honestidade contigo era mais importante do que a honestidade para com os outros, para com as tuas dívidas que nem sabias estar a contrair no momento em que as fizeste, que as tentas pagar por culpa, mais do que pelo sentido de o deveres, ou por uma questão de honestidade. Nunca percebi se a culpa era exterior ou eras tu que a formavas num ritual maníaco-depressivo, se eras tu que o permitias ou ela se instalava como uma parede opressora. Existia uma certa tendência para a misantropia que partilhávamos, e talvez isso emoldurasse as nossas relações com as culpas e a necessidade de ir pagando os preços até que de alguma forma algo se parte e a culpa torna-se o fim em si mesmo, imolando-se pelo fogo que foi contraindo. O tempo que medeia a dor e a dor à qual já não consegues sobreviver depende apenas da capacidade de sofrimento e do quanto te deixam sofrer, não pela cegueira mas pela partilha de dores. Existe um momento em que a honestidade é o que deves e outro em que a honestidade é apenas de uma brutal cobardia. Que deves tu a ti mesmo? mais do que fazeres o que achas que deves? sem a segurança de que não haja sangue, de que as tuas mãos não agarrem um punhal que sangre pelo cabo?
e tu olhavas-me com a cinza do cigarro a pender do cotovelo pousado na mesa, os meus olhos mais baixos, que os teus já marejados, à procura de um ponto onde fixar os nós que parecem esmigalhar-se no peito criando buracos de nada. Um cinzeiro e dois copos na mesa, uma janela ao canto de onde só se via um mar cinza de nevoeiro e os candeeiros criavam pequenas abóbadas amarelas ao seu redor.
Perguntaste-me muitas vezes qual é a linha que separa a ignomínia do que se deve dar, qual a fronteira onde o que fazes já é te rebaixares, se as outras pessoas fazem o mesmo, se é o que deve ser, se é o suposto. Nunca soube responder, nunca percebi o que é normal, alguns dir-te-iam que a fronteira está onde estás feliz, mas ambos sabemos que essa fronteira não serve, se essa fosse a nossa escolha significava nunca fazer nada e estar permanentemente em fuga, estar sempre no estado de não estar. A colocar-se, seria a questão do que nós temos que dar, para outros estarem felizes, com a esperança de assim termos algum espaço para o mesmo, e isso sempre foi o que nos coloca nesta violência de insónias e asfixia.
Pára, por favor pára!

Red light

terça-feira, 15 de abril de 2014

O silêncio, ai o silêncio

“Não há gravações do que se passou durante a entrega do Grande Prémio de Romance e Novela da APE, na sala 2 da Fundação Gulbenkian, a 7 de Abril. Havia jornalistas presentes mas não em trabalho, a tomar notas. Por isso não há forma de citar “ipsis verbis” o que disse o Secretário de Estado da Cultura (SEC), Jorge Barreto Xavier. Mas há algumas dezenas de testemunhas que podem acrescentar ou corrigir o que vou tentar resumir agora aqui, por tudo se ter passado numa cerimónia pública.
Sendo este prémio tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, decidiu o actual presidente, Cavaco Silva, à semelhança de anos anteriores, fazer-se representar. Neste caso, pelo seu Consultor para Assuntos Culturais, Diogo Pires Aurélio. Isto era o que eu sabia quando escrevi o discurso para a ocasião.
Já no átrio da Gulbenkian, perto da hora marcada, 18h, a APE comunicou-me que a cerimónia estava um pouco atrasada porque esperavam o Secretário de Estado da Cultura.
Quando Barreto Xavier chegou e entrámos todos para a sala, o protocolo sentou-o ao centro da mesa, junto a Diogo Pires Aurélio. Nas pontas, Gulbenkian (representada por Rui Vieira Nery), APE (José Manuel Mendes, José Correia Tavares), júri (representado por Isabel Cristina Rodrigues) e eu. Vieira Nery abriu, sucintamente; seguiram-se discursos da APE; Isabel Cristina Rodrigues leu o texto em que o júri justifica a atribuição do prémio a "E a Noite Roda". Diogo Pires Aurélio e eu levantámo-nos para que ele me entregasse o sobrescrito do prémio, um minuto de formalidade, sem palavras, para a fotografia. Chegou a minha vez de discursar, li as páginas que trazia. No fim, houve uma ovação de pé. Digo isto para dar conta da atmosfera que os representantes do poder político tinham diante de si.
A APE convidou então o SEC a intervir. Ele escolheu falar sentado, sem se deslocar ao púlpito. Uma das coisas que disse, na parte, digamos, cultural da intervenção, foi que eu bem podia declarar que não fazia ficção porque claro que fazia ficção porque é isso que um escritor faz, ficção. Foi o primeiro arroubo dirigista, que nos devia ter preparado para o que aí vinha.
Na parte, digamos, política, destaco quatro coisas: o SEC disse que eu devia estar grata por estarmos em democracia e eu poder dizer o que dissera; que durante anos os portugueses se tinham endividado acima das suas possibilidades; que, ao contrário do que eu dissera, ninguém saíra de Portugal por incentivo deste governo; e, sobretudo, que eu tinha dito que não devia nada a este governo mas que isso não era verdade porque este governo também subsidiava o prémio.
Referia-se ele, assim, a um prémio com décadas de existência; atribuído a alguns dos mais extraordinários escritores de língua portuguesa; cujo montante em dinheiro resulta de vários patrocínios, sendo que os públicos resultam do dinheiro dos contribuintes; e que tem atravessado os mais variados governos, sem que nunca, que me recorde, algum governante o tenha tentado instrumentalizar. Foi a mais escancarada confusão de Estado com Governo que já presenciei, para além do tom chantagista ao nível de jardim de infância das ditaduras. E, apesar dos apupos, de quem lhe gritava da plateia "Mentira!" e "O Estado somos nós!", o SEC insistia.
Como cabe ao Presidente da República, ou seu representante, encerrar a cerimónia, a APE instou Diogo Pires Aurélio a falar. O representante do Presidente da República declinou e encerrou a sessão. No fim, cumprimentou cordatamente todos os presentes na mesa e retirou-se.
Já Barreto Xavier, aproximou-se de mim na confusão da retirada. Julguei que se vinha despedir, depois de dizer o que tinha a dizer. Nada disso. Queria dizer-me, visivelmente irritado, que o que eu fizera tinha sido de um grande "primarismo". Respondi-lhe que então devia ter dito isso mesmo ao microfone, que eu já dissera o que tinha a dizer e não lhe ia dizer mais nada. Fui andando, para contornar a mesa e acabar com a cena, mas o SEC insistia: que eu tinha sido “primária”.
- Espécie de nota de imprensa de Alexandra Lucas Coelho 

o que me espantou não foi o sucedido, foi a aparente normalidade com que o caso foi tratado, ou não tratado, na comunicação social. Gostava de ter ouvido (ou lido, caso se tratasse de outra espécie de nota de imprensa) a versão do SEC. Se calhar é só a mim que me parece mais grave que todas as outras trapalhadas noticiadas sobre o mesmo membro do governo, é que não se trata de espoliação do património material comum mas sim de… enfim, por cornos com a mão foi o outro corrido...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Lá fora estão os senhores da guerra

Eu que sempre soube que te ia perder, apetecia-me ir bater à porta que conhecia mas o aviso de que ias para a guerra chegou há três meses e tu já partiste. Tentei perceber se os teus dois amigos foram contigo, mas deles nada soube, talvez tenham mudado de casa, não sei. Já não te via há algum tempo, desde que paraste de espreitar pela janela do local onde, cada vez menos, vou fumar como os meninos pequenos. Por vezes ainda olhava por cima do ombro e pensava ver-te a sombra, mas, depois, um barulho estalava e eu percebia que era só um ramo a bater na vidraça. Uma ou duas vezes liguei mesmo a luz e sai da penumbra a ver se, se fosses tu, darias um passo em frente e me deixavas uma mensagem gravada no tronco da árvore com o canivete. Agora tenho a certeza que foste para a guerra, para um qualquer país onde a batalha se trave, eu que nunca tive um familiar que fosse para uma guerra que não fosse nossa, o meu avó nasceu com a primeira guerra e na segunda não foi ninguém, só os meus tios foram para as colónias. Mas aí o caso era inteiramente diferente, foram defender o que diziam que era nosso, e concordando ou não lá foram porque não iam fugir para os locais para onde te enviaram, não tinham essa hipótese. Dizem-me que foi voluntário, que a decisão foi tua, mas não acredito bem nisso, não ias abandonar tudo a não ser que sentisses não ter outra escolha. Parece-me que ainda te vejo os sapatos na soleira da porta a perguntar se podias romper o meu silêncio e eu, que tantas vezes fingi não ver, só queria que o rompesses. Fugi quando não aguentava fazer mais, a pensar que não te impedia e tu agora foste, com as alternativas magras. Se soubesse podia não ter fugido, não sei, os lenços caíam-me com as lágrimas e eu não tenho a certeza se seria capaz de te impedir de alguma coisa, só sabia que te impedia a vida. Apetecia-me enviar-te um e-mail, mas não há caixas de e-mail na guerra, só novos começos todos os dias, com a fadiga das noites no céu estrelado e peito trémulo nas pintas da farda. Não quero ser como as meninas de lenço na mão a acenar aos navios, a pedir-te para teres cuidado e que cuides de ti. Que voltes bem, sem feridas. Não quero, pela mão, cheia de nada, que não consegue segurar lenços quando eles me caem, como lágrimas.