Disseste-me que tinhas uma vocação extraordinária para magoar pessoas. acho que sorri, foi naquele café da meia noite, ou no dia seguinte. Cinco excepções para cinco confissões, foram mais, o bushmills correu como catalisador, ainda que distante. Sorri por reflexo, acreditei que tinhas uma vocação para magoar pessoas, para que o sol te pedisse calor e tu com pequenos estalactites para dar, com um vazio de gruta no peito a sorrir e a derramar o olhar como um manto cravejado de estrelas polares. A distância entre ti e o teu presente era tão grande que eu não podia deixar de acreditar. Vivias nas linhas escritas dos poetas antes de ti, nas cartas que se enviavam, nos telegramas. Vivamos todos aí, e, por engano, tínhamos que lidar com as personagens que sangravam, e a nós tudo nos parecia tão distantes. Na altura tinha 40 e poucos, tu, um pouco menos, ainda hoje um pouco menos ou talvez muito menos. Pouco sabíamos da vida, e isso não interessava. Os nossos dramas eram infinitos, assim como as nossas incertezas, o pendor dramático corroía-nos as insónias e vivamos sem saber que o nó no estômago podia ser desatado. Eu ainda não sei, talvez tu já o saibas mas não me ensinaste como fazer que as páginas escritas passassem a ser a realidade da paisagem à nossa frente. Não havia inocentes, só nós, era nisso que acreditávamos, já sem acreditar, sem nunca acreditar, hipersensibilidades hiperbrutalidade, mas de nós sabíamos o que nos era verdadeiro quando adormecemos por exaustão, dos outros é sempre uma incógnita que nos pede mais do que somos capaz de dar, que nos impele a cortar os olhos e a sacrificar as facas na cintura, com a vã esperança de responder ao que nos é pedido, de conseguir escrever o que os outros querem ler. Nunca capazes de escrever o que fica a arder em lume brando por tanto tempo, pelo tempo necessário para que valha a pena, sempre a considerar isso uma brutalidade encardida de mágoas, as que não temos a coragem de pagar. Partir, quebrar, ser, exultar, gritar com a força dos pulmões, já sem ar, que não somos capazes, que não nos é quente, que não fomos, que não somos, talvez, aquilo que era suposto, uma constante sensação de falha de características para o que queríamos dar, para o sorriso que queríamos alcançar. Existe essa dor dupla de falta de aderência, de olharmos o espelho e não sermos nós os reflectidos, outros talvez, algo melhor que nós, mas não nós, e, no mesmo gesto, nesse mesmo esgar de olhos, ver reflectido o que deveríamos ser e não conseguimos por falta de algo normal.
O pior é que tudo parece conspirar para que o escarlate com que se cobre o peito seja mais lento que o esperado, seja mais escuro, não silve a escuridão mas absorva a dor de não ser o que se queria. Fazer o bem dirias tu, mas fazer o bem é impossível, essa tentativa vã de fazer o bem magoa sempre mais do que era suposto. A ti dá-te certezas; a mim parece-me uma quimera capaz de incendiar as dores mais profundas dos ossos e corroer-nos os olhos, com a incerteza tonta de que se estamos a fazer o bem estaremos sempre protegido das noites de temor. É falso, é tudo uma falsidade, nem a honestidade parece possível, não sem ser desembainhar uma espada carregada de tétano, e nela não habita a certeza de fazer o bem, a honestidade não é bondosa, é uma verdade tão pessoal que ergue barreiras de sangue a arder destinada a magoar todos os que se aproximam. Respeitar e corresponder, esquecer, anular, engolir, fazer o devido, não desiludir. É mais ou menos honesto? Em tempos pensei ter-te dito a verdade, agora já não sei. As nossas dividas avolumam-se e o credor é um homem de preto do qual não conseguimos ver os olhos.
Estás a dizer asneiras. Sabes que as digo sempre. Isso é mentira rapaz, tu és perigoso. Nem sempre. é mentira, sabes bem que o problema não é esse. Nunca sei nada, só a insegurança.
Havia a incerteza da pertença, dizia-te eu, que não havia essa sensação, mesmo que a pertença ficasse no farol que quebra o mar. Tu dizias o contrário, que era a incerteza da incerteza, que te tinha desiludido e fendido os olhos como só um cruzador é capaz. Parecias viver no alugar dos locais, sem a definitiva sensação de serem teus, sem a certeza que era ali que voltavas todas as noites, pois no teu peito parecia sempre haver um lugar que escondias. Era essa duplicidade entre o interior e o exterior que te tirava a certeza de não teres pertença, dizias-me que sim, eu não sei se acreditava. Falava-te da ausência desse interior que não permite que haja exterior ao qual pertencemos e a ti não parecia estranho, fazendo-me acreditar que existia um abismo de rochas violetas entre as tuas pertenças e que uma guerra surda habitava neles, uma guerra que despedaçava os locais de forma tão violenta que te era impossível aceitares que não pertencias. Talvez seja sempre esse o estado de pertencer em pessoas como tu, uma violenta refrega entre o presente e o desajuste do ser. Havia pontes, bem sei que havia pontes, cinzentas de betão descarnado, de betão que deixa os ferros à mostra depois de tanto batido, que tu cruzavas a toda a hora com a vontade, com uma obrigação que era só interna, que te retesava os músculos e te prendia os nervos ao ponto de já não te ser possível falar a não ser contigo mesmo, de seres aquilo que devias, de pagares esses pequenos preços para toda a gente e que na verdade eram dívidas tão volumosas que te esmagavam contra o chão, em que cada passo era um arrastar que esfarelava os joelhos e te retirava o ar dos pulmões. Por meu lado, existia sempre um abismo de onde olhava na imobilidade de não ter para onde correr, de não me terem explicado porque ali estava e onde apenas uma pilha de livros me fazia companhia. Tentei deitar a pilha ao chão muitas vezes, disse-te, para conseguir ver se depois deles havia caminho, mas sempre que eles caiam aparecia o seu dobro, numa constante biblioteca de Borges que não deixava de ser também um dos seus labirintos aprisionadores. Talvez tudo não fosse mais do que um exagerado gosto pelas paisagens grandiosas em estado de degradação melancólica e a realidade fosse apenas a de normalidade para qualquer pessoa, uma pequena disputa entre ser e querer estar.
Não sei se concordo contigo. Porquê? Tens lume? - estende o braço - porque não me parece que todas as pessoas sintam o mesmo. Ou que se sintam tão atormentadas. Ou isso. É sempre mais difícil quando tens 60 anos e tens que te levantar às cinco da manhã para apanhar um autocarro, enquanto cinco pessoas estão atrás de ti ainda levados depois do jantar a fazer horas para as roulottes fecharem.
Falavas-me da honestidade como um dilema tão sofrido que eu não tenho a certeza se percebia completamente. Percebia como reflexo das minhas concepções da honestidade, na certeza que era sempre a melhor via. Debatias-te se seria sempre o melhor, se a honestidade contigo era mais importante do que a honestidade para com os outros, para com as tuas dívidas que nem sabias estar a contrair no momento em que as fizeste, que as tentas pagar por culpa, mais do que pelo sentido de o deveres, ou por uma questão de honestidade. Nunca percebi se a culpa era exterior ou eras tu que a formavas num ritual maníaco-depressivo, se eras tu que o permitias ou ela se instalava como uma parede opressora. Existia uma certa tendência para a misantropia que partilhávamos, e talvez isso emoldurasse as nossas relações com as culpas e a necessidade de ir pagando os preços até que de alguma forma algo se parte e a culpa torna-se o fim em si mesmo, imolando-se pelo fogo que foi contraindo. O tempo que medeia a dor e a dor à qual já não consegues sobreviver depende apenas da capacidade de sofrimento e do quanto te deixam sofrer, não pela cegueira mas pela partilha de dores. Existe um momento em que a honestidade é o que deves e outro em que a honestidade é apenas de uma brutal cobardia. Que deves tu a ti mesmo? mais do que fazeres o que achas que deves? sem a segurança de que não haja sangue, de que as tuas mãos não agarrem um punhal que sangre pelo cabo?
e tu olhavas-me com a cinza do cigarro a pender do cotovelo pousado na mesa, os meus olhos mais baixos, que os teus já marejados, à procura de um ponto onde fixar os nós que parecem esmigalhar-se no peito criando buracos de nada. Um cinzeiro e dois copos na mesa, uma janela ao canto de onde só se via um mar cinza de nevoeiro e os candeeiros criavam pequenas abóbadas amarelas ao seu redor.
Perguntaste-me muitas vezes qual é a linha que separa a ignomínia do que se deve dar, qual a fronteira onde o que fazes já é te rebaixares, se as outras pessoas fazem o mesmo, se é o que deve ser, se é o suposto. Nunca soube responder, nunca percebi o que é normal, alguns dir-te-iam que a fronteira está onde estás feliz, mas ambos sabemos que essa fronteira não serve, se essa fosse a nossa escolha significava nunca fazer nada e estar permanentemente em fuga, estar sempre no estado de não estar. A colocar-se, seria a questão do que nós temos que dar, para outros estarem felizes, com a esperança de assim termos algum espaço para o mesmo, e isso sempre foi o que nos coloca nesta violência de insónias e asfixia.
Pára, por favor pára!
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