terça-feira, 26 de março de 2013

Outro maldito, que não sou senão este tempo que decorre



Porque falta meia hora antes de
tomar o comprimido para dormir,
porque mesmo depois de tanto tempo
fazes de mi o filho com síndroma de Down
de Arthur Miller,
porque escrever não é só abrir cabeças
com o bisturi de Lacan,
e porque um poema não é a Isabella Rossellini
a chorar todos os sábados à noite,
nem o casal encontrado abraçado
na paralisia bucal do Vesúvio.
Porque a poesia não é a ponte Mirabeau
num cartaz de néon da adolescência,
porque hoje, quando ligaste,
era apenas porque te tinhas enganado no número,
porque estou cansado, voilà,
e não consigo evitar a noite,
penso agora em ti, Juliana,
heroína no sentido naturalista do termo,
penso sobretudo no teu arzinho
de provocação e de ataque.

Podias ter sido a Maria Eduarda
do cinema norte-americano,
a rapariga que ajudou a pôr fim à guerra em Vietname,
a Frida Kahlo e o Kofi Annan,
a estátua de Notre Dame.

O teu sentido reformista,
o teu olhar de Eça socialista,
cá está,
tinhas cabeças para embaixadora da boa vontade,
pés para andar nos corredores da ONU,
o feitio da botina, a mania, a despesa.

Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido,
de cara para a parede
enquanto 20 repúblicas foram perpetuando
campanhas eleitorais e golpes de estado
nos jornais com os quais limpas os vidros da cozinha.

Coitada, coitadinha, coitadíssima,
permaneces na sala, um pouco pálida e fraca,
mas restituída aos deveres domésticos e aos prazeres da sociedade!

O feitio da botina, a mania, a despesa,
o cheiro a terebintina,
Ó Juliana Couceiro Tavira, per omnia saecula,
chega para cá a garrafa e o cinzeiro;
temos assuntos por tratar e meia hora de créditos.

Golgona Anghel
in Vim Porque Me Pagavam (Lisboa: Mariposa Azul, 2011)

quinta-feira, 21 de março de 2013

Ás de espadas, Valete de copas

Conta as ondas, conta as ondas como se quisesses de sair de lá vivo. Tira a camisola e habitua-te ao frio, conta de novo como se fosse black jack. 21 ganhas 21 perdes. Estiveste a beber, não te sentes à mesa quando bebeste. Veste a camisola e vai embora. Estou bem, estou a contar as ondas. Estás enjoado, vais vomitar. É náusea sartriana, vai correr bem. Bebeste vinho, gin e whisky, não vais sair vivo. Já fiz isto vezes demais - pois, vezes demais. És capaz de ficar desta. Conto as ondas, para entrar e para sair, para apostar e parar. O risco é controlado, não pretendo ficar. Não? Talvez, mas não mesmo. A espuma quase que te manda ao chão, não entres. bebeste, vais morrer de indigestão. Não há problema, conta, entra, conta e sai. Não tem que saber, até uma criança era capaz, se não entrasse em pânico. Fuma um cigarro, mata-te mais devagar. Fumo sim, mas depois entro. Estúpido. De que é que tens tanto medo? Não posso viver sem ti. Sorri. Pois, não é apenas da boca para fora, não vives fora de mim. Merda apetecia-me mais um copo e isto está a ficar um gelo. Vou vomitar. Então não era sartriana? Vai-te foder. Sartre uma merda, detestei.  'Tá calado que vomitas. Entra lá. Ok, deixa ver como isto está. Entra à sétima e saí com a sexta, fácil - enterra o cigarro na areia fria. Isto hoje está para 21, balança o corpo, três passos rápidos, corpo em arco e entra debaixo da rebentação da onda. O gelo a cortar os ossos, o enjoo acalmou, a inocência como quimera ardente. Só o frio no peito a conter a respiração, a cabeça comprimida e a sensação de vertigem. Alea jacta est, apostas na mesa e o croupier só tem que virar as cartas da casa. Agora só falta contar para sair...

segunda-feira, 18 de março de 2013