terça-feira, 24 de março de 2015

Será que respondeste à pergunta grega?

Amo devagar os amigos que são tristes
com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem
e estão sentados,
fechando os olhos,
com os livros atrás a arder
para toda a eternidade.

Não os chamo,
e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De Paixão.

Hérberto Helder
(1930 - 2015)

sexta-feira, 20 de março de 2015

o grito e o eco da metralha


fazes o gesto de respirar, o teu corpo emula o acto de respirar, e no fim não entra nem sai ar. fica suspenso, sem respirar, tem que ser empurrado para um pequeno arfar. A sucessão da dor calada tem efeitos físicos, não é dor, nem rasgo, nem desilusão, é areia. Pequenos pedaços de areia que se empurram uns aos outros numa agonia de não terem para onde ir, comprimindo o peito, os órgãos da cavidade contra as costelas, contra o externo, demasiado cheio de areia para caber ar. não é dor, é compressão, é um canto escuro que se mantém e que se alastra como a mancha na parede, contaminando desde o sexo aos dentes, comprimindo, não deixando respirar, não acreditando no futuro possível ou imaginário, algo que empurra para a morte mas nem sequer a chega a desejar, uma necessidade do nada, sem morte ou sem vida. Ficas parado, bloqueado no olhar vítreo escondido pelos óculos escuros, o jornal pousado nas mãos que estranhamente não tremem por falta de sangue, pensas que tens que te levantar, sair, tentar que o ar frio te salve, e não consegues comandar os músculos, todo tu estás concentrado na opressão que sentes, no esforço máximo, quase fatal, de tentar respirar um pouco que seja. A cabeça a latejar, não sabendo se da falta de ar se da imobilidade que te aprisiona, o cérebro a não se conseguir libertar de pensar que aquela opressão é o que sentem os condenados à morte por um ataque fulminante, não te doí o coração, não parece que ele seja isolável, está misturado com a areia, coberto, molhado, desgastado como os rochedos que têm nomes de santos, e no entanto não consegues não pensar que aquilo será um ataque de coração, talvez de pânico, mas tu sabes que os ataques de pânico têm outros cambiantes. Tiveste que entrar, chovia quando lias o jornal e lamentas o acto que não te permitiu ficar ao vento, queres fumar um cigarro na esperança que a opressão passe, que a areia se transforme em vidro e faça frio no teu peito, mas sabes que o fumo vai ser quente e te vai saturar ainda mais, mas não tens outra alternativa, não consegues ter outra alternativa, tentas acabar o artigo do jornal que fala dos mortos em África ou de um atentado qualquer lá longe e nenhum dos conteúdos te diz algo particularmente próximo, é numa espécie de voyeirismo que os lês, para saber que morre gente por esta ou aquela razão, não interessa, mas juntas as letras com a pressa dos enforcados, acabas o artigo sem saber o que disse, sem saber porque morrem. Respiras fundo, tentas, o teu respirar fundo é sorver um pedaço de ar tão pequeno como o necessário a um colibri, manifestamente insuficiente para  a empresa imprudente que tens pela frente, a de te levantares, dirigires-te ao balcão e pedir a conta. especialmente pedires a conta, tens que falar com um ser humano, e ele não pode notar como tu estás, não pode dilacera-te o peito, não pode! vais, imprudente, com o olhar fechado, fixado num ponto fundo de uma garrafa de uma porcaria qualquer que não chegas a perceber o que é, não vês os pés, as mesas, as pessoas, não vês nada, é tudo difuso, uma vaga sensação que existe mas da qual não podes tomar consciência sob o risco de cair. O homem tira-te a conta antes de lá chegares mas obriga-te a falar. falas a olhar para a caixa registadora, olhas para as moedas na mão não tens troco certo, dás as moedas e já olhas para fora com a mão estendida para que te deixem cair a moeda na mão e saias dali como perseguido por fantasmas. O casal da única mesa ocupada da esplanada levanta-se quando cruzas a porta, a saída é única, paras o passo, tiras o cigarro do maço para lhe dares distância, acendes e o peito enche-se de um bafo quente do deserto, o desespero aumenta, só queres que eles se distanciem mais ainda, o cheiro dos perfumes baratos enoja-te, torna-se insuportável, gritas-lhes para se despacharem, mas nenhum som saí, concentrado que estás em respirar e a não andar como se caísses. Avanças para o carro, sentas-te, deixas-te, o cigarro não está a ajudar. Será um ataque de pânico, será a dor de dentes? será a falência de que orgão? Um ataque de pânico não pode ser, é demasiado feminino, demasiado fraco, não podes ter um ataque de pânico, foi no meio do jornal, não tens razões para isso, não há ataques de pânico a meio de notícias de fome e morte, isso fica para os dias de sol em que as preocupações são outras, hoje chove e estão nuvens, não pode ser mas continuas a simular que respiras, passam momentos inteiros que o teu peito se congela no acto em que devia entrar ar, o peito oprime-te, dobras-te para olhar para o chão mas a ausência de dor é a mesma, esmurras duas ou três vezes o travão de mão e sabe-te bem, mas é demasiado estúpido para ser essa a solução. Paras. Pensas que devias falar com alguém, ligar a alguém a dizer "estou a ter um ataque. de coração? de pânico? não, de areia. De areia, mas estás na praia? não, tenho uma ampulheta demasiado cheia no peito." mas não tens a quem ligar para dizer isso. a quem ligarias com essa franqueza? não pode ser, devias ligar a alguém para falar de merdas sem importância, de trabalho não pode ser, não consegues articular suficientemente bem para isso, não podes fazer notar a tua falência mental. de futebol ou maquilhagens, para não pensares, só ouvir uma voz e fazer de conta que afinal está tudo normal e tu não estás sem ar por excesso de areia. olhas o telefone vezes sem conta, mexes-lhe para enganar as pessoas que passam, que não estás cheio de areia mas sim a trabalhar afincadamente e tens muita gente a mandar-te coisas que não podem esperar nem mais um segundo a ser respondidas tal é a desmesura da importância. deixas cair os óculos, pesam-te na respiração, pegas no jornal que abres na notícia de África para ver se a seguinte é sobre impostos ou declarações políticas, não consegues juntar as vogais dos títulos, são demasiado grandes para serem vogais legíveis, atiras o jornal para o lado e deixas cair a cabeça entre as pernas, contra o volante, e pensas que se passa alguém que repara e te pergunta se está tudo bem tens que fazer todo o esforço, que certamente fará com que a areia te submirja, para lhe dizer sim sim, está tudo bem claro, com uma cara muito espantada de quem não percebe porque lhe fazem essa pergunta. Sentes os olhos demasiado abertos, olhas o retrovisor e os teus olhos parecem os mesmos de sempre, mas estão demasiado abertos, pressionados para fora, doem-te todos os dentes, respiras pela boca, a areia é abrasiva. acendes outro cigarro, a mesma sensação quente, abres todos os vidros do carro, pensas que queres vomitar mas há três dias que não comes portanto não pode ser essa a solução. riscas o espelho com rugas a pensar que elas sempre existiram, a areia não apaga as rugas, fica lá depositada a aumentar o efeito. fazes gestos idiotas com a cara, mecânicos, numa esperança vã de distracção e com a curiosidade dos reality shows de saber como se parece um idiota a ter um ataque que o vai matar.

quinta-feira, 19 de março de 2015

era a tarde mais longa...

'If you, who are organized by Divine Providence for spiritual communion, refuse, and bury your talent in the earth, even though you should want natural bread,—sorrow and desperation pursue you through life, and after death shame and confusion of face to eternity."
william blake

quarta-feira, 4 de março de 2015

80 metros de profundidade

Olhavas muitas vezes pelo canto do olho, de cada vez como uma censura terna ao que não estava a fazer. O problema sempre foi esse, o que eu não fazia. Raras foram as vezes em que o problema se deveu ao que fiz, talvez pelo início. Certamente pelo início. Prometi demais, sem saber prometi o que não iria cumprir, e tu, sem saberes, sem me conheceres, deste como certo o que prometi; querias acreditar que era verdade, mesmo se deverias ter alguma reserva de confiança. Aliás, toda a tua reserva foi canalizada para não acreditares no que não querias acreditar, ignorando todo o capital de dor que tinhas, foste destruindo o que te impedia de crer no que desejavas. É sempre um mau principio esse, mas foi o nosso e eu, eu que mantenho sempre um federalismo escrupuloso em não me ter como certo, fazendo o esforço para dissecar o que digo, sabendo que uma parte poderá dever-se ao que sinto, à necessidade de não dor, fui resvalando nesse trabalho de laboratório e vendo o sol a pôr-se dia após dia sem tirar um momento para, com uma pinça, retirar os corpos estranhos que se iam depositando no meu discurso, nas minhas atitudes. A culpa foi muito mais minha que tua, eu fui-te deixando acreditar, tu queria tanto que fosse verdade tudo o que te dava a entender, que eu nem precisava de o dizer completamente, bastava deixar as peças colocadas que tu ias juntando e inventando as regras do jogo, pensando que eu conhecia plenamente o jogo que tu ias construindo, como não haveria de conhecer se era eu que ia deixando os valores pousados no tabuleiro de pequeno-almoço. Infelizmente não conhecia, e não tive a coragem para te o dizer, mesmo quando tu ias-me pondo à prova e exigindo que o quinhão fosse cada vez maior, que a dose fosse mais completa, que o jogo se transformasse em realidade, eu ia fornecendo alimento suficiente para que não parasses, por muito que isso me custasse, e custou, tantas vezes custou tão mais do que se fosse realidade, nessa necessidade de construir sem te dar a conhecer que era uma construção, de me duplicar em mais do que dois, sim, que essa realidade obrigava-me a assumir vários papéis para os quais eu não tinha a menor apetência. A alguns adaptei-me, e passaram a não me custar, tornaram-se realidade, mas a maior parte deles foi sempre com preços de sangue que os encenei a todos os momentos, em todos os segundos, para que a realidade não desse lugar ao jogo, para que não existissem sombras debaixo desse sol frio que nenhuma Iorque era capaz de aquecer. Creio que os únicos momentos de descanso eram os de insónia, onde a minha mente já não construía realidades, em que assumia o jogo como um processo externo, uma realidade construída onde eu era rei, que a governava, e escravo, onde um ser autoreflexivo pan-óptico me impunha a obediência a todas as regras do limite da realidade, protegendo a quarta parede contra o meu próprio desejo de a derrubar, nessas horas, longas e onde a dimensão do cansaço de encenação tomava conta, impedindo-me de adormecer, pois até no acto de adormecer haveria lugar à ritualização para que a tangibilidade do desempenho não irrompesse o frágil equilíbrio que albergava, permitia-me a olhar o laboratório como um palco para conquistar o mundo que sabia não querer, mas que me afligia perturbar. E tu foste olhando de soslaio à minha diminuta capacidade de indo administrando doses cada vez superiores, de fazer com que o sonho superasse a realidade, que é a necessidade quando a realidade não se encontra disponível, duas pastilhas para não sonhar, que sem o contraponto a realidade torna-se algo de difícil localização, eu que já não conseguia engolir mais comprimidos, que não tinha organismo para aguentar a toxidade após tanto tempo e já me tinha destruído o estômago, sim, que é com o estômago que se suporta a dor, não é com o coração, o doí-me o coração é uma palermice para quando a pancada não é suficientemente forte, uma dorzita aguda no peito que logo passa, agora quando a hecatombe avança como um comboio suburbano capaz de te trucidar as pernas sem te levar a consciência de que sangras, como um animal abatido a quem não foram capazes de cortar o pescoço, a dor sente-se no estômago e acompanha-te dias, semanas, meses, anos a fio, até que te esqueces da dor, não porque a deixaste de sentir mas, porque ela é tão presente que já faz parte de ti.

terça-feira, 3 de março de 2015

exercício 1

vida louca vida imensa, já que eu não posso te levar, quero que você me leve, não é isto mas é algo parecido com isso. Viagem directa ao desconhecido, ao esquecimento e a uma paz de tumba. Óptimo, tumba, cova rasa, algo parecido com beber um negroni ao pôr-de-sol. Um cigarro e enquanto a cinza caí o barulho de um corpo a bater no chão, uma calma inimaginável, um fio no monitor, e acabou-se os sobressaltos, já não há pi pis para ninguém, não me chateiem que estou morto, finei-me.
Nada mais me interessa, nem mentiras, nem mesmo das sinceras, contam já. Pão paz e o raio que te parta, só pode haver paz quando já não importar haver pão, que se foda a protecção e os atentados, acabou-se. Exagero? nada de exagerado aqui, uma rede entre duas árvores e uma bomba relógio atada aos cordões, vai no balanço com o tic tac até à eternidade.