sexta-feira, 20 de março de 2015

o grito e o eco da metralha


fazes o gesto de respirar, o teu corpo emula o acto de respirar, e no fim não entra nem sai ar. fica suspenso, sem respirar, tem que ser empurrado para um pequeno arfar. A sucessão da dor calada tem efeitos físicos, não é dor, nem rasgo, nem desilusão, é areia. Pequenos pedaços de areia que se empurram uns aos outros numa agonia de não terem para onde ir, comprimindo o peito, os órgãos da cavidade contra as costelas, contra o externo, demasiado cheio de areia para caber ar. não é dor, é compressão, é um canto escuro que se mantém e que se alastra como a mancha na parede, contaminando desde o sexo aos dentes, comprimindo, não deixando respirar, não acreditando no futuro possível ou imaginário, algo que empurra para a morte mas nem sequer a chega a desejar, uma necessidade do nada, sem morte ou sem vida. Ficas parado, bloqueado no olhar vítreo escondido pelos óculos escuros, o jornal pousado nas mãos que estranhamente não tremem por falta de sangue, pensas que tens que te levantar, sair, tentar que o ar frio te salve, e não consegues comandar os músculos, todo tu estás concentrado na opressão que sentes, no esforço máximo, quase fatal, de tentar respirar um pouco que seja. A cabeça a latejar, não sabendo se da falta de ar se da imobilidade que te aprisiona, o cérebro a não se conseguir libertar de pensar que aquela opressão é o que sentem os condenados à morte por um ataque fulminante, não te doí o coração, não parece que ele seja isolável, está misturado com a areia, coberto, molhado, desgastado como os rochedos que têm nomes de santos, e no entanto não consegues não pensar que aquilo será um ataque de coração, talvez de pânico, mas tu sabes que os ataques de pânico têm outros cambiantes. Tiveste que entrar, chovia quando lias o jornal e lamentas o acto que não te permitiu ficar ao vento, queres fumar um cigarro na esperança que a opressão passe, que a areia se transforme em vidro e faça frio no teu peito, mas sabes que o fumo vai ser quente e te vai saturar ainda mais, mas não tens outra alternativa, não consegues ter outra alternativa, tentas acabar o artigo do jornal que fala dos mortos em África ou de um atentado qualquer lá longe e nenhum dos conteúdos te diz algo particularmente próximo, é numa espécie de voyeirismo que os lês, para saber que morre gente por esta ou aquela razão, não interessa, mas juntas as letras com a pressa dos enforcados, acabas o artigo sem saber o que disse, sem saber porque morrem. Respiras fundo, tentas, o teu respirar fundo é sorver um pedaço de ar tão pequeno como o necessário a um colibri, manifestamente insuficiente para  a empresa imprudente que tens pela frente, a de te levantares, dirigires-te ao balcão e pedir a conta. especialmente pedires a conta, tens que falar com um ser humano, e ele não pode notar como tu estás, não pode dilacera-te o peito, não pode! vais, imprudente, com o olhar fechado, fixado num ponto fundo de uma garrafa de uma porcaria qualquer que não chegas a perceber o que é, não vês os pés, as mesas, as pessoas, não vês nada, é tudo difuso, uma vaga sensação que existe mas da qual não podes tomar consciência sob o risco de cair. O homem tira-te a conta antes de lá chegares mas obriga-te a falar. falas a olhar para a caixa registadora, olhas para as moedas na mão não tens troco certo, dás as moedas e já olhas para fora com a mão estendida para que te deixem cair a moeda na mão e saias dali como perseguido por fantasmas. O casal da única mesa ocupada da esplanada levanta-se quando cruzas a porta, a saída é única, paras o passo, tiras o cigarro do maço para lhe dares distância, acendes e o peito enche-se de um bafo quente do deserto, o desespero aumenta, só queres que eles se distanciem mais ainda, o cheiro dos perfumes baratos enoja-te, torna-se insuportável, gritas-lhes para se despacharem, mas nenhum som saí, concentrado que estás em respirar e a não andar como se caísses. Avanças para o carro, sentas-te, deixas-te, o cigarro não está a ajudar. Será um ataque de pânico, será a dor de dentes? será a falência de que orgão? Um ataque de pânico não pode ser, é demasiado feminino, demasiado fraco, não podes ter um ataque de pânico, foi no meio do jornal, não tens razões para isso, não há ataques de pânico a meio de notícias de fome e morte, isso fica para os dias de sol em que as preocupações são outras, hoje chove e estão nuvens, não pode ser mas continuas a simular que respiras, passam momentos inteiros que o teu peito se congela no acto em que devia entrar ar, o peito oprime-te, dobras-te para olhar para o chão mas a ausência de dor é a mesma, esmurras duas ou três vezes o travão de mão e sabe-te bem, mas é demasiado estúpido para ser essa a solução. Paras. Pensas que devias falar com alguém, ligar a alguém a dizer "estou a ter um ataque. de coração? de pânico? não, de areia. De areia, mas estás na praia? não, tenho uma ampulheta demasiado cheia no peito." mas não tens a quem ligar para dizer isso. a quem ligarias com essa franqueza? não pode ser, devias ligar a alguém para falar de merdas sem importância, de trabalho não pode ser, não consegues articular suficientemente bem para isso, não podes fazer notar a tua falência mental. de futebol ou maquilhagens, para não pensares, só ouvir uma voz e fazer de conta que afinal está tudo normal e tu não estás sem ar por excesso de areia. olhas o telefone vezes sem conta, mexes-lhe para enganar as pessoas que passam, que não estás cheio de areia mas sim a trabalhar afincadamente e tens muita gente a mandar-te coisas que não podem esperar nem mais um segundo a ser respondidas tal é a desmesura da importância. deixas cair os óculos, pesam-te na respiração, pegas no jornal que abres na notícia de África para ver se a seguinte é sobre impostos ou declarações políticas, não consegues juntar as vogais dos títulos, são demasiado grandes para serem vogais legíveis, atiras o jornal para o lado e deixas cair a cabeça entre as pernas, contra o volante, e pensas que se passa alguém que repara e te pergunta se está tudo bem tens que fazer todo o esforço, que certamente fará com que a areia te submirja, para lhe dizer sim sim, está tudo bem claro, com uma cara muito espantada de quem não percebe porque lhe fazem essa pergunta. Sentes os olhos demasiado abertos, olhas o retrovisor e os teus olhos parecem os mesmos de sempre, mas estão demasiado abertos, pressionados para fora, doem-te todos os dentes, respiras pela boca, a areia é abrasiva. acendes outro cigarro, a mesma sensação quente, abres todos os vidros do carro, pensas que queres vomitar mas há três dias que não comes portanto não pode ser essa a solução. riscas o espelho com rugas a pensar que elas sempre existiram, a areia não apaga as rugas, fica lá depositada a aumentar o efeito. fazes gestos idiotas com a cara, mecânicos, numa esperança vã de distracção e com a curiosidade dos reality shows de saber como se parece um idiota a ter um ataque que o vai matar.

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