sexta-feira, 4 de abril de 2014

Lá fora estão os senhores da guerra

Eu que sempre soube que te ia perder, apetecia-me ir bater à porta que conhecia mas o aviso de que ias para a guerra chegou há três meses e tu já partiste. Tentei perceber se os teus dois amigos foram contigo, mas deles nada soube, talvez tenham mudado de casa, não sei. Já não te via há algum tempo, desde que paraste de espreitar pela janela do local onde, cada vez menos, vou fumar como os meninos pequenos. Por vezes ainda olhava por cima do ombro e pensava ver-te a sombra, mas, depois, um barulho estalava e eu percebia que era só um ramo a bater na vidraça. Uma ou duas vezes liguei mesmo a luz e sai da penumbra a ver se, se fosses tu, darias um passo em frente e me deixavas uma mensagem gravada no tronco da árvore com o canivete. Agora tenho a certeza que foste para a guerra, para um qualquer país onde a batalha se trave, eu que nunca tive um familiar que fosse para uma guerra que não fosse nossa, o meu avó nasceu com a primeira guerra e na segunda não foi ninguém, só os meus tios foram para as colónias. Mas aí o caso era inteiramente diferente, foram defender o que diziam que era nosso, e concordando ou não lá foram porque não iam fugir para os locais para onde te enviaram, não tinham essa hipótese. Dizem-me que foi voluntário, que a decisão foi tua, mas não acredito bem nisso, não ias abandonar tudo a não ser que sentisses não ter outra escolha. Parece-me que ainda te vejo os sapatos na soleira da porta a perguntar se podias romper o meu silêncio e eu, que tantas vezes fingi não ver, só queria que o rompesses. Fugi quando não aguentava fazer mais, a pensar que não te impedia e tu agora foste, com as alternativas magras. Se soubesse podia não ter fugido, não sei, os lenços caíam-me com as lágrimas e eu não tenho a certeza se seria capaz de te impedir de alguma coisa, só sabia que te impedia a vida. Apetecia-me enviar-te um e-mail, mas não há caixas de e-mail na guerra, só novos começos todos os dias, com a fadiga das noites no céu estrelado e peito trémulo nas pintas da farda. Não quero ser como as meninas de lenço na mão a acenar aos navios, a pedir-te para teres cuidado e que cuides de ti. Que voltes bem, sem feridas. Não quero, pela mão, cheia de nada, que não consegue segurar lenços quando eles me caem, como lágrimas.

1 comentário:

Pulha Garcia disse...

"Eu que sempre soube que te ia perder" é uma grande frase sacana. A ironia é quando sabemos que a perda começa em nós. Quanto ao resto, os senhores da guerra estão sempre lá. A questão é aproveitar os intervalos da chuva. Um abraço.