quarta-feira, 23 de abril de 2014

a arder em lume lento

Disseste-me que tinhas uma vocação extraordinária para magoar pessoas. acho que sorri, foi naquele café da meia noite, ou no dia seguinte. Cinco excepções para cinco confissões, foram mais, o bushmills correu como catalisador, ainda que distante. Sorri por reflexo, acreditei que tinhas uma vocação para magoar pessoas, para que o sol te pedisse calor e tu com pequenos estalactites para dar, com um vazio de gruta no peito a sorrir e a derramar o olhar como um manto cravejado de estrelas polares. A distância entre ti e o teu presente era tão grande que eu não podia deixar de acreditar. Vivias nas linhas escritas dos poetas antes de ti, nas cartas que se enviavam, nos telegramas. Vivamos todos aí, e, por engano, tínhamos que lidar com as personagens que sangravam, e a nós tudo nos parecia tão distantes. Na altura tinha 40 e poucos, tu, um pouco menos, ainda hoje um pouco menos ou talvez muito menos. Pouco sabíamos da vida, e isso não interessava. Os nossos dramas eram infinitos, assim como as nossas incertezas, o pendor dramático corroía-nos as insónias e vivamos sem saber que o nó no estômago podia ser desatado. Eu ainda não sei, talvez tu já o saibas mas não me ensinaste como fazer que as páginas escritas passassem a ser a realidade da paisagem à nossa frente. Não havia inocentes, só nós, era nisso que acreditávamos, já sem acreditar, sem nunca acreditar, hipersensibilidades hiperbrutalidade, mas de nós sabíamos o que nos era verdadeiro quando adormecemos por exaustão, dos outros é sempre uma incógnita que nos pede mais do que somos capaz de dar, que nos impele a cortar os olhos e a sacrificar as facas na cintura, com a vã esperança de responder ao que nos é pedido, de conseguir escrever o que os outros querem ler. Nunca capazes de escrever o que fica a arder em lume brando por tanto tempo, pelo tempo necessário para que valha a pena, sempre a considerar isso uma brutalidade encardida de mágoas, as que não temos a coragem de pagar. Partir, quebrar, ser, exultar, gritar com a força dos pulmões, já sem ar, que não somos capazes, que não nos é quente, que não fomos, que não somos, talvez, aquilo que era suposto, uma constante sensação de falha de características para o que queríamos dar, para o sorriso que queríamos alcançar. Existe essa dor dupla de falta de aderência, de olharmos o espelho e não sermos nós os reflectidos, outros talvez, algo melhor que nós, mas não nós, e, no mesmo gesto, nesse mesmo esgar de olhos, ver reflectido o que deveríamos ser e não conseguimos por falta de algo normal.
O pior é que tudo parece conspirar para que o escarlate com que se cobre o peito seja mais lento que o esperado, seja mais escuro, não silve a escuridão mas absorva a dor de não ser o que se queria. Fazer o bem dirias tu, mas fazer o bem é impossível, essa tentativa vã de fazer o bem magoa sempre mais do que era suposto. A ti dá-te certezas; a mim parece-me uma quimera capaz de incendiar as dores mais profundas dos ossos e corroer-nos os olhos, com a incerteza tonta de que se estamos a fazer o bem estaremos sempre protegido das noites de temor. É falso, é tudo uma falsidade, nem a honestidade parece possível, não sem ser desembainhar uma espada carregada de tétano, e nela não habita a certeza de fazer o bem, a honestidade não é bondosa, é uma verdade tão pessoal que ergue barreiras de sangue a arder destinada a magoar todos os que se aproximam. Respeitar e corresponder, esquecer, anular, engolir, fazer o devido, não desiludir. É mais ou menos honesto? Em tempos pensei ter-te dito a verdade, agora já não sei. As nossas dividas avolumam-se e o credor é um homem de preto do qual não conseguimos ver os olhos.
Estás a dizer asneiras. Sabes que as digo sempre. Isso é mentira rapaz, tu és perigoso. Nem sempre. é mentira, sabes bem que o problema não é esse. Nunca sei nada, só a insegurança.
Havia a incerteza da pertença, dizia-te eu, que não havia essa sensação, mesmo que a pertença ficasse no farol que quebra o mar. Tu dizias o contrário, que era a incerteza da incerteza, que te tinha desiludido e fendido os olhos como só um cruzador é capaz. Parecias viver no alugar dos locais, sem a definitiva sensação de serem teus, sem a certeza que era ali que voltavas todas as noites, pois no teu peito parecia sempre haver um lugar que escondias. Era essa duplicidade entre o interior e o exterior que te tirava a certeza de não teres pertença, dizias-me que sim, eu não sei se acreditava. Falava-te da ausência desse interior que não permite que haja exterior ao qual pertencemos e a ti não parecia estranho, fazendo-me acreditar que existia um abismo de rochas violetas entre as tuas pertenças e que uma guerra surda habitava neles, uma guerra que despedaçava os locais de forma tão violenta que te era impossível aceitares que não pertencias. Talvez seja sempre esse o estado de pertencer em pessoas como tu, uma violenta refrega entre o presente e o desajuste do ser. Havia pontes, bem sei que havia pontes, cinzentas de betão descarnado, de betão que deixa os ferros à mostra depois de tanto batido, que tu cruzavas a toda a hora com a vontade, com uma obrigação que era só interna, que te retesava os músculos e te prendia os nervos ao ponto de já não te ser possível falar a não ser contigo mesmo, de seres aquilo que devias, de pagares esses pequenos preços para toda a gente e que na verdade eram dívidas tão volumosas que te esmagavam contra o chão, em que cada passo era um arrastar que esfarelava os joelhos e te retirava o ar dos pulmões. Por meu lado, existia sempre um abismo de onde olhava na imobilidade de não ter para onde correr, de não me terem explicado porque ali estava e onde apenas uma pilha de livros me fazia companhia. Tentei deitar a pilha ao chão muitas vezes, disse-te, para conseguir ver se depois deles havia caminho, mas sempre que eles caiam aparecia o seu dobro, numa constante biblioteca de Borges que não deixava de ser também um dos seus labirintos aprisionadores. Talvez tudo não fosse mais do que um exagerado gosto pelas paisagens grandiosas em estado de degradação melancólica e a realidade fosse apenas a de normalidade para qualquer pessoa, uma pequena disputa entre ser e querer estar.
Não sei se concordo contigo. Porquê? Tens lume? - estende o braço - porque não me parece que todas as pessoas sintam o mesmo. Ou que se sintam tão atormentadas. Ou isso. É sempre mais difícil quando tens 60 anos e tens que te levantar às cinco da manhã para apanhar um autocarro, enquanto cinco pessoas estão atrás de ti ainda levados depois do jantar a fazer horas para as roulottes fecharem.
Falavas-me da honestidade como um dilema tão sofrido que eu não tenho a certeza se percebia completamente. Percebia como reflexo das minhas concepções da honestidade, na certeza que era sempre a melhor via. Debatias-te se seria sempre o melhor, se a honestidade contigo era mais importante do que a honestidade para com os outros, para com as tuas dívidas que nem sabias estar a contrair no momento em que as fizeste, que as tentas pagar por culpa, mais do que pelo sentido de o deveres, ou por uma questão de honestidade. Nunca percebi se a culpa era exterior ou eras tu que a formavas num ritual maníaco-depressivo, se eras tu que o permitias ou ela se instalava como uma parede opressora. Existia uma certa tendência para a misantropia que partilhávamos, e talvez isso emoldurasse as nossas relações com as culpas e a necessidade de ir pagando os preços até que de alguma forma algo se parte e a culpa torna-se o fim em si mesmo, imolando-se pelo fogo que foi contraindo. O tempo que medeia a dor e a dor à qual já não consegues sobreviver depende apenas da capacidade de sofrimento e do quanto te deixam sofrer, não pela cegueira mas pela partilha de dores. Existe um momento em que a honestidade é o que deves e outro em que a honestidade é apenas de uma brutal cobardia. Que deves tu a ti mesmo? mais do que fazeres o que achas que deves? sem a segurança de que não haja sangue, de que as tuas mãos não agarrem um punhal que sangre pelo cabo?
e tu olhavas-me com a cinza do cigarro a pender do cotovelo pousado na mesa, os meus olhos mais baixos, que os teus já marejados, à procura de um ponto onde fixar os nós que parecem esmigalhar-se no peito criando buracos de nada. Um cinzeiro e dois copos na mesa, uma janela ao canto de onde só se via um mar cinza de nevoeiro e os candeeiros criavam pequenas abóbadas amarelas ao seu redor.
Perguntaste-me muitas vezes qual é a linha que separa a ignomínia do que se deve dar, qual a fronteira onde o que fazes já é te rebaixares, se as outras pessoas fazem o mesmo, se é o que deve ser, se é o suposto. Nunca soube responder, nunca percebi o que é normal, alguns dir-te-iam que a fronteira está onde estás feliz, mas ambos sabemos que essa fronteira não serve, se essa fosse a nossa escolha significava nunca fazer nada e estar permanentemente em fuga, estar sempre no estado de não estar. A colocar-se, seria a questão do que nós temos que dar, para outros estarem felizes, com a esperança de assim termos algum espaço para o mesmo, e isso sempre foi o que nos coloca nesta violência de insónias e asfixia.
Pára, por favor pára!

Red light

terça-feira, 15 de abril de 2014

O silêncio, ai o silêncio

“Não há gravações do que se passou durante a entrega do Grande Prémio de Romance e Novela da APE, na sala 2 da Fundação Gulbenkian, a 7 de Abril. Havia jornalistas presentes mas não em trabalho, a tomar notas. Por isso não há forma de citar “ipsis verbis” o que disse o Secretário de Estado da Cultura (SEC), Jorge Barreto Xavier. Mas há algumas dezenas de testemunhas que podem acrescentar ou corrigir o que vou tentar resumir agora aqui, por tudo se ter passado numa cerimónia pública.
Sendo este prémio tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, decidiu o actual presidente, Cavaco Silva, à semelhança de anos anteriores, fazer-se representar. Neste caso, pelo seu Consultor para Assuntos Culturais, Diogo Pires Aurélio. Isto era o que eu sabia quando escrevi o discurso para a ocasião.
Já no átrio da Gulbenkian, perto da hora marcada, 18h, a APE comunicou-me que a cerimónia estava um pouco atrasada porque esperavam o Secretário de Estado da Cultura.
Quando Barreto Xavier chegou e entrámos todos para a sala, o protocolo sentou-o ao centro da mesa, junto a Diogo Pires Aurélio. Nas pontas, Gulbenkian (representada por Rui Vieira Nery), APE (José Manuel Mendes, José Correia Tavares), júri (representado por Isabel Cristina Rodrigues) e eu. Vieira Nery abriu, sucintamente; seguiram-se discursos da APE; Isabel Cristina Rodrigues leu o texto em que o júri justifica a atribuição do prémio a "E a Noite Roda". Diogo Pires Aurélio e eu levantámo-nos para que ele me entregasse o sobrescrito do prémio, um minuto de formalidade, sem palavras, para a fotografia. Chegou a minha vez de discursar, li as páginas que trazia. No fim, houve uma ovação de pé. Digo isto para dar conta da atmosfera que os representantes do poder político tinham diante de si.
A APE convidou então o SEC a intervir. Ele escolheu falar sentado, sem se deslocar ao púlpito. Uma das coisas que disse, na parte, digamos, cultural da intervenção, foi que eu bem podia declarar que não fazia ficção porque claro que fazia ficção porque é isso que um escritor faz, ficção. Foi o primeiro arroubo dirigista, que nos devia ter preparado para o que aí vinha.
Na parte, digamos, política, destaco quatro coisas: o SEC disse que eu devia estar grata por estarmos em democracia e eu poder dizer o que dissera; que durante anos os portugueses se tinham endividado acima das suas possibilidades; que, ao contrário do que eu dissera, ninguém saíra de Portugal por incentivo deste governo; e, sobretudo, que eu tinha dito que não devia nada a este governo mas que isso não era verdade porque este governo também subsidiava o prémio.
Referia-se ele, assim, a um prémio com décadas de existência; atribuído a alguns dos mais extraordinários escritores de língua portuguesa; cujo montante em dinheiro resulta de vários patrocínios, sendo que os públicos resultam do dinheiro dos contribuintes; e que tem atravessado os mais variados governos, sem que nunca, que me recorde, algum governante o tenha tentado instrumentalizar. Foi a mais escancarada confusão de Estado com Governo que já presenciei, para além do tom chantagista ao nível de jardim de infância das ditaduras. E, apesar dos apupos, de quem lhe gritava da plateia "Mentira!" e "O Estado somos nós!", o SEC insistia.
Como cabe ao Presidente da República, ou seu representante, encerrar a cerimónia, a APE instou Diogo Pires Aurélio a falar. O representante do Presidente da República declinou e encerrou a sessão. No fim, cumprimentou cordatamente todos os presentes na mesa e retirou-se.
Já Barreto Xavier, aproximou-se de mim na confusão da retirada. Julguei que se vinha despedir, depois de dizer o que tinha a dizer. Nada disso. Queria dizer-me, visivelmente irritado, que o que eu fizera tinha sido de um grande "primarismo". Respondi-lhe que então devia ter dito isso mesmo ao microfone, que eu já dissera o que tinha a dizer e não lhe ia dizer mais nada. Fui andando, para contornar a mesa e acabar com a cena, mas o SEC insistia: que eu tinha sido “primária”.
- Espécie de nota de imprensa de Alexandra Lucas Coelho 

o que me espantou não foi o sucedido, foi a aparente normalidade com que o caso foi tratado, ou não tratado, na comunicação social. Gostava de ter ouvido (ou lido, caso se tratasse de outra espécie de nota de imprensa) a versão do SEC. Se calhar é só a mim que me parece mais grave que todas as outras trapalhadas noticiadas sobre o mesmo membro do governo, é que não se trata de espoliação do património material comum mas sim de… enfim, por cornos com a mão foi o outro corrido...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Lá fora estão os senhores da guerra

Eu que sempre soube que te ia perder, apetecia-me ir bater à porta que conhecia mas o aviso de que ias para a guerra chegou há três meses e tu já partiste. Tentei perceber se os teus dois amigos foram contigo, mas deles nada soube, talvez tenham mudado de casa, não sei. Já não te via há algum tempo, desde que paraste de espreitar pela janela do local onde, cada vez menos, vou fumar como os meninos pequenos. Por vezes ainda olhava por cima do ombro e pensava ver-te a sombra, mas, depois, um barulho estalava e eu percebia que era só um ramo a bater na vidraça. Uma ou duas vezes liguei mesmo a luz e sai da penumbra a ver se, se fosses tu, darias um passo em frente e me deixavas uma mensagem gravada no tronco da árvore com o canivete. Agora tenho a certeza que foste para a guerra, para um qualquer país onde a batalha se trave, eu que nunca tive um familiar que fosse para uma guerra que não fosse nossa, o meu avó nasceu com a primeira guerra e na segunda não foi ninguém, só os meus tios foram para as colónias. Mas aí o caso era inteiramente diferente, foram defender o que diziam que era nosso, e concordando ou não lá foram porque não iam fugir para os locais para onde te enviaram, não tinham essa hipótese. Dizem-me que foi voluntário, que a decisão foi tua, mas não acredito bem nisso, não ias abandonar tudo a não ser que sentisses não ter outra escolha. Parece-me que ainda te vejo os sapatos na soleira da porta a perguntar se podias romper o meu silêncio e eu, que tantas vezes fingi não ver, só queria que o rompesses. Fugi quando não aguentava fazer mais, a pensar que não te impedia e tu agora foste, com as alternativas magras. Se soubesse podia não ter fugido, não sei, os lenços caíam-me com as lágrimas e eu não tenho a certeza se seria capaz de te impedir de alguma coisa, só sabia que te impedia a vida. Apetecia-me enviar-te um e-mail, mas não há caixas de e-mail na guerra, só novos começos todos os dias, com a fadiga das noites no céu estrelado e peito trémulo nas pintas da farda. Não quero ser como as meninas de lenço na mão a acenar aos navios, a pedir-te para teres cuidado e que cuides de ti. Que voltes bem, sem feridas. Não quero, pela mão, cheia de nada, que não consegue segurar lenços quando eles me caem, como lágrimas.

terça-feira, 11 de março de 2014

espelhos distorcidos

Quando se fuma como eu fumo, com a alma partida e a face rasgada por um lápis de metal, a inocência torna-se quimera ardente.

Quando se fuma assim, como eu fumo, ou como a rapariga de olhos verdes fuma, não se escapa da dor, aumenta-se a dor a cada bafo na esperança que o fundo não esteja longe e depois se parta daí com a dor evangelizada.



andava com estes dois pedaços de texto na cintura há mais de quatro meses, parte do texto escrito até já migrou para outro deixando o esqueleto ainda mais branco, e de repente, um daqueles tipos que nos rasgam o imaginário escreveu o que andávamos a dançar há meses de uma maneira que nunca seríamos capazes de escrever, e éramos capazes de jurar que nunca o tínhamos visto, mas se calhar vimos:

LA CANCIÓN DEL CROUPIER DEL MISSISSIPI

Canción pirata
Fumo mucho. Demasiado.
Fumo para frotar el tiempo y a veces oigo la radio,
y oigo pasar la vida como quien pone la radio.
Fumo mucho. En el cenicero hay
ideas y poemas y voces
de amigos que no tengo. Y tengo
la boca llena de sangre,
y sangre que sale de las grietas de mi cráneo
y toda mi alma sabe a sangre,
sangre fresca no sé si de cerdo o de hombre que soy,
en toda mi alma acuchillada por mujeres y niños
que se mueven ingenuos, torpes, en
esta vida que ya sé.
Me palpo el pecho de pronto, nervioso,
y no siento un corazón. No hay,
no existe en nadie esa cosa que llaman corazón
sino quizá en el alcohol, en esa
sangre que yo bebo y que es la sangre de Cristo,
la única sangre en este mundo que no existe
que es como el mal programado, o
como fábrica de vida o un sastre
que ha olvidado quién es y sigue viviendo, o
quizá el reloj y las horas pasan.
Me palpo, nervioso, los ojos y los pies y el dedo gordo
de la mano lo meto en el ojo, y estoy sucio
y mi vida oliendo.
Y sueño que he vivido y que me llamo de algún modo
y que este cuento es cierto, este
absurdo que delatan mis ojos,
este delirio en Veracruz, y que este
país es cierto este lugar parecido al Infierno,
que llaman España, he oído
a los muertos que el Infierno
es mejor que esto y se parece más.
Me digo que soy Pessoa, como Pessoa era Álvaro de Campos,
me digo que estar borracho es no estarlo
toda la vida, es
estar borracho de vida y no de muerte,
es una sangre distinta de esa otra
espesa que se cuela por los tejados y por las paredes
y los agujeros de la vida.
Y es que no hay otra comunión
ni otro espasmo que este del vino
y ningún otro sexo ni mujer
que el vaso de alcohol besándome los labios
que este vaso de alcohol que llevo en el
cerebro, en los pies, en la sangre.
que este vaso de vino oscuro o blanco,
de ginebra o de ron o lo que sea
- ginebra y cerveza, por ejemplo -
que es como la infancia, y no es
huida, ni evasión, ni sueño
sino la única vida real y todo lo posible
y agarro de nuevo la copa como el cuello de la vida y cuento
a algún ser que es probable que esté
ahí la vida de los dioses
y unos días soy Caín, y otros
un jugador de poker que bebe whisky perfectamente y otros
un cazador de dotes que por otra parte he sido
pero lo mío es como en “Dulce pájaro de juventud”
un cazador de dotes hermoso y alcohólico, y otros días,
un asesino tímido y psicótico, y otros
alguien que ha muerto quién sabe hace cuánto,
en qué ciudad, entre marineros ebrios. Algunos me
recuerdan, dicen
con la copa en la mano, hablando mucho,
hablando para poder existir de que
no hay nada mejor que decirse
a sí mismo una proposición de Wittgenstein mientras sube
la marea del vino en la sangre y el alma.
O bien alguien perdido en las galerías del espejo
buscando a su Novia. Y otras veces
soy Abel que tiene un plan perfecto
para rescatar la vida y restaurar a los hombres
y también a veces lloro por no ser un esclavo
negro en el sur, llorando
entre las plantaciones!
Es tan bella la ruina, tan profunda
sé todos sus colores y es
como una sinfonía la música del acabamiento,
como música que tocan en el más allá,
y ya no tengo sangre en las venas, sino alcohol,
tengo sangre en los ojos de borracho
y el alma invadida de sangre como de una vomitona,
y vomito el alma por las mañanas,
después de pasar toda la noche jurando
frente a una muñeca de goma que existe Dios.
Escribir en España no es llorar, es beber,
es beber la rabia del que no se resigna
a morir en las esquinas, es beber y mal
decir, blasfemar contra España
contra este país sin dioses pero con
estatuas de dioses, es
beber en la iglesia con música de órgano
es caerse borracho en los recitales y manchas de vino
tinto y sangre “Le livre des masques” de Rémy de Gourmont
caerse húmedo babeante y tonto y
derrumbarse como un árbol ante los farolillos
de esta verbena cultural. Escribir en España es tener
hasta el borde en la sangre este alcohol de locura que ya
no justifica nada ni nadie, ninguna sombra
de las que allí había al principio.
Y decir al morir, cuando tenga
ya en la boca y cabeza la baba del suicidio
gritarle a las sombras, a las tantas que hay y fantasmas
en este paraíso para espectros
y también a los ciervos que he visto en el bosque,
y a los pájaros y a los lobos en la calle y
acechando en las esquinas.

Leopoldo María Panero

quinta-feira, 6 de março de 2014

Leopoldo María Panero (1948 - 2014)

“Morreu Leopoldo María Panero, morreu o nosso Peter Pan, o nosso Artaud, o nosso louco, o nosso intocável, o nosso monstro. Aconteceu em Las Palmas (Gran Canária), à meia-noite, na Unidade Clínica de Reabilitação do Hospital Juan Carlos I. Chegou a hora do obituário mais esperado da literatura espanhola.”
El Mundo



El Loco

He vivido entre los arrabales, pareciendo
un mono, he vivido en la alcantarilla

transportando las heces,
he vivido dos años en el Pueblo de las Moscas
y aprendido a nutrirme de lo que suelto.
Fui una culebra deslizándose
por la ruina del hombre, gritando
aforismos en pie sobre los muertos,
atravesando mares de carne desconocida
con mis logaritmos.
Y sólo pude pensar que de niño me secuestraron para una alucinante batalla
y que mis padres me sedujeron para
ejecutar el sacrilegio, entre ancianos y muertos.
He enseñado a moverse a las larvas
sobre los cuerpos, y a las mujeres a oír
cómo cantan los árboles al crepúsculo, y lloran.
Y los hombres manchaban mi cara con cieno, al hablar,
y decían con los ojos «fuera de la vida», o bien «no hay nada que pueda
ser menos todavía que tu alma», o bien «cómo te llamas»
y «qué oscuro es tu nombre».
He vivido los blancos de la vida,
sus equivocaciones, sus olvidos, su
torpeza incesante y recuerdo su
misterio brutal, y el tentacúlo
suyo acariciarme el vientre y las nalgas y los pies
frenéticos de huida.
He vivido su tentación, y he vivido el pecado
del que nadie cabe nunca nos absuelva

quarta-feira, 5 de março de 2014

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

domingo, 12 de janeiro de 2014

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

2013




I got a feeling I just can't shake, I got a feeling that just won't go away - You've got it, just keep on pushing and, keep on pushing, Push the sky away. And if your friends think that you should do it different, And if they think that you should do it the same. You've got it, just keep on pushing and, keep on pushing. Push the sky away. And if you feel you got everything you came for, If you got everything and you don't want no more, You've got it, just keep on pushing and, keep on pushing. Push the sky away!

Some people say it's just rock 'n' roll. Aw, but it gets you right down to your soul - You've got it, just keep on pushing and, keep on pushing - Push the sky away

You've got it, just keep on pushing and, keep on pushing. Push the sky away...

domingo, 5 de janeiro de 2014

72 Temporadas - Eusébio

Nació destinado a lustrar zapatos, vender maníes o robar a los distraídos. De niño, lo llamaban Ninguém, nadie, ninguno. Hijo de madre viuda, jugaba al fútbol con sus muchos hermanos en los arenales de los suburbios, desde el amanecer hasta la noche.

En el Mundial del 66, sus zancadas dejaron un tendal de adversarios por el suelo y sus goles, desde ángulos imposibles, desataron ovaciones de nunca acabar.

Fue un africano de Mozambique el mejor jugador de toda la historia de Portugal. Eusebio: altas piernas, brazos caídos, mirada triste


Eduardo Galeano

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Guiltless



"…procurando adivinhar o que eu sentia e não sentia fosse o que fosse ou sentia coisas sem importância para os outros e que me custam contar, respondia-lhes que a lua me sorria na intenção que me deixassem em paz onde o silêncio se encontra com a noite e as árvores e as coisas desistem de ser…"
Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?
António Lobo Antunes

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Personne ne se rend compte que certaines personnes dépensent beaucoup d’énergie simplement pour être normale*

um homem é o somatório do seu ser com o seu passado e os sonhos do seu futuro. Retirar ao homem o seu desejo futuro origina um animal amorfo, tirar-lhe o seu passado transfigura-o numa besta sem escrúpulos. O momento presente é, por definição, uma ausência de tempo ou de espaço, tudo é passado ou futuro, o agora é uma impossibilidade gelada, tudo já aconteceu ou vai acontecer. é o conjunto de argumentos passados que permite a corrida para o futuro e é o excesso de passado que hipoteca o futuro. "to have me in the future you have to forgive my past". por seu lado, o excesso de futuro não permite que o passado se acumule de modo a robustecer o acontecer de futuro, um oroboro terrivelmente pernicioso, cheio de dúvidas e ânsias que nunca se concretizam. Existem sombras mais escuras que a noite "como esta casa deve ser triste às três horas da tarde" "na noite mais escura da alma são sempre três da madrugada" e é uma combinação de objectivos futuros que permitem dar sentido ao passado que se constrói como realizador de um filme muito próprio, onde a trivialidade da realidade é relegada para um discursos auto existencialista. Têmis e Nêmesis de uma noite demasiado longa, de um dia demasiado perpétuo, jogo de dados com um fim estabelecido. é uma sedução da vida à morte, uma sedução, que como todas as mulheres, espera ganhar sabendo que não existem realmente vencedores, é um desequilíbrio entre dar e perder, uma vingança e necessidade de retribuição e uma temperança que se propaga para aplacar o futuro, para o conquistar, para sobreviver ao passado. um jogo entre atrair e vingar. vingar o quê? as pequenas loucuras ou as pequenas perdas? atrair o quê? pequenas vitórias ou novas cartas para um jogo que já se perdeu? aqui surge o ser, moldado, esculpido, cinzelado, estropiado, magoado pelo seu contexto. não o incorpora, a sede de sangue será sempre sede de sangue mesmo num campo de magnólias, e portanto o contexto embora perpétuo é um jogo de livre arbítrio, mesmo que a única escolha seja antecipar o olvido e recolher-se nos seus braços frios. contudo, o seu contexto, iminentemente interno como na caverna mais do que o externo da propaganda é ao mesmo tempo recurso e produto do eu, permitindo, ao mesmo tempo que inviabiliza, as escolhas livres de o serem, afigurando-se, assim, como as escolhas de um animal enjaulado sem saber que engoliu a chave do seu cárcere. a própria consciência desse gole prisioneiro constitui um recurso pouco plausível para alguém que ainda espera o futuro e impossível para quem esqueceu o passado. não passando, isto tudo, de um diálogo com o absurdo onde Nix colocará um afago final, de, onde brotarão deuses.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"everyone who bought one of those 30,000 copies started a band."

Músico que nunca deixou a grande maçã mas que pensava em Sintra como alternativa, Poeta de quem tenho um livro palmado faz muitos anos. 71 anos a distorcer percepções. Aquele que lançou um álbum e demorou 40 anos a vê-lo reconhecido como uma obra maior. Aquele que depois de 18 álbuns lança um duplo em parceria com o Poe. Aquele que em 50 anos de carreira lança 35 álbuns, enterra a Nico e Warhol, tendo despedido os dois previamente, é abandonado por  Cale e reencontra-o mais à frente, colabora com Zorn e faz um péssimo álbum com Metallica, que talvez daqui a 40 anos seja louvado. Aquele que pôs o mundo a cantar músicas de travestis como se fosse alegria de celebração e subversão de Dean.




segunda-feira, 21 de outubro de 2013

It’s just a shadow you’re seein’ that he’s chasing



Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me

I’m not sleepy and there is no place I’m going to
Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me
In the jingle jangle morning I’ll come followin’ you

terça-feira, 15 de outubro de 2013

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

But he himslef was broken




RETRATO DE FUGITIVO POR PAULO NOZOLINO

caminha pela solidão nocturna dos quartos de hotel
e de fotografia em fotografia chega exausto
ao minucioso poema a preto e branco
mas já não o surpreende a violenta visão do mundo
este lento destroço que um líquido sussurro de prata
revela a partir de iluminada fracção de segundo 

e bebe
e ama
e foge de si mesmo
com a leica pronta a ferir como uma bala ecoando
no fundo da memória um néon uma pedra
uma arquitectura de luz e sombra ou um deserto
onde se debruça para retocar os dias com um lápis
na certeza que sobreviverá a estes perfeitos acidentes
a estes restos de corpos a pouco e pouco turvos
pelo tempo pelo sono ou pela melancolia

mas regressa sempre à transumância das cidades
quando a alba do flash prende o furtivo gesto
sobre o papel fotográfico morre o misterioso fugitivo
depois
vem o medo
que se desprende do olhar imobilizado e do rosto
nasce uma vida de infinito caos
Al Berto

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Juan Luís Panero (1942-2013)



Sólo son tuyas —de verdad— la memoria y la muerte,
la memoria que borra y desfigura
y la sombra de la muerte que aguarda.

Juan Luis Panero, en el clan de los poetas enfurecidos


Es imposible atender la figura de Juan Luis Panero, poeta que ayer falleció a los 71 años en la localidad de Torroella de Montgrí (Gerona), donde residía desde hace años, sin tener en cuenta sus ascendentes, su entorno inmediato, el clan de poetas al que perteneció, por mucho que su obra guardase personalidad propia y él mismo, dentro del espíritu rebelde que caracterizó a todos los suyos, tuviera una andadura que miró más allá de una España gris y cerrada –pasó temporadas en América Latina y se relacionaría con figuras tan importantes como Jorge Luis Borges, Octavio Paz y Juan Rulfo, además de frecuentar a Luis Cernuda en México–. Nacido en Madrid en 1942 y hermano del poeta Leopoldo María Panero, ingresado en un centro psiquiátrico desde hace muchos años; hermano también del intelectual Michi Panero, desaparecido en 2004; hijo del poeta Leopoldo Panero, muerto en 1962; sobrino de Juan Panero, muerto a los veintinueve años, en 1937: varias generaciones y una misma extrañeza, la de escribir en una vida incómoda, traumática.
En el caso de Juan Luis, su poesía de línea clara representó para él una manera de encarar la autodestrucción que veía alrededor; de corte narrativo, sus versos no se apreciaron hasta tarde, al haber estado siempre a la sombra del polémico y llamativo Leopoldo María. Cabe destacar su libro de 1968 «A través del tiempo», «Los trucos de la muerte» (1975), «Desapariciones y fracasos», títulos que lo dicen todo sobre el talante del poeta, y sobre todo «Antes que llegue la noche» (1985, Premio Ciudad de Barcelona); Panero ya tenía un nombre por sí mismo, lo que vino a refrendar el hecho de ganar la primera convocatoria del Premio Loewe con «Galería de fantasmas» (1988) y ser merecedor de otro premio, el Comillas de biografía de la editorial Tusquets «Sin rumbo cierto» (1999). La misma editorial en la que vio la luz su poesía completa dos años antes.
Señas de identidad
Ese rumbo perpetuamente incierto, sometido a unas relaciones familiares siempre turbulentas, que recorren la época del franquismo, la Transición y la democracia, tenía una matriarca de nombre paradójico en el contexto que luego quedaría reflejado en dos filmes documentales, uno firmado por Jaime Chávarri en 1976 y una continuación, materializada en 1994 por el desaparecido Ricardo Franco: Felicidad Blanc, que presenció el lanzamiento recíproco de reproches, traiciones, afectos y egocentrismos entre su descendencia.
La locura, la orfandad, la paranoia, incluso la cárcel eran asuntos que aparecían en sus obras como señas de identidad vitales; y sobre todas ellas, «la memoria y la muerte», como decía en un poema de «Enigmas y despedidas» (1999) y que aún enarbola su hermano, el único superviviente y representante de ese fatalismo con el que siempre se relacionará a los Panero.
La Rázon, 18 de septiembre


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Parar e...

duas para perder o dia...





quarta-feira, 4 de setembro de 2013

"Como esta casa deve ser triste às três horas da tarde (...)

Haverá noite para este dia digam-me, uma altura em que deixo de distinguir o salgueiro e depois do salgueiro a janela, os móveis desaparecem porque não acendemos a luz, ficam as pegas de metal a brilhar um momento, um frémito nas portas que ninguém gira, os meus irmãos procurando-se e eu em busca da saída dado que principiaram as dores e não acho o caminho da rua, apercebo-me do alpendre onde a lanterna baloiça na corrente, ao regressar ao baldio via-a na esquina e acalmava, estou a chegar, estou em casa, não me fazem mal já, o quintal fechava-se-me sobre o corpo e escondia-me, nenhuma cólica, nenhum suor, a paz e com a paz a indecisão da madrugada no peitoril- Nasço não nasço?" 
                       in Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar, de António Lobo Antunes

quinta-feira, 18 de julho de 2013

down to your...


a morte esconde-se no calor, no colarinho molhado, no cheiro acre. O silêncio encontra-se no peito negro de abismos, mudo, onde a profundidade do eco não tem retorno. A vida passa em segundos lentos de nadas colados uns aos outros como forma de dar o desenho de um adn dos dias. A respiração toma o balanço do corpo e pressente-se no momento em que se afunda. As dores acontecem em morrinha de sussurro, presentes, com alterações de intensidade, mas presentes, presentes sempre. Escorrem ideias, calmamente a caírem no fundo do mar, aspirações e desastres, todas a caírem até não mais submergirem. A capsula da atmosfera fecha-se, contorna e aperta. Carrega o ar de estática, de plástico. Os ossos descarnam lentamente, sem dor, como pedaços secos, e apenas a sua visão causa tristeza. Os meninos fecham os olhos nas esquinas das sombras, adormecem profundamente sem que lhes tenha sido dado as boas noites e as estrelas já não os olham. O barulho desaparece de dia, a cidade esconde-se nas ondas do horizonte como colunas enroladas em si mesmas e à noite os programas de televisão têm horários marcados para falarem entre si pelas varandas abertas enquanto os seus ocupantes se esquecem dessa capacidade. Os carros param destroçados pela corrosão nas portas de janelas meias subidas a colher a poeira. Os cães deitam-se e as pessoas passam a olhar para o chão entre as garrafas de plástico. Uma sapatilha branca, de uma marca conhecida, descreve rastos no passeio, espelha o sol e desaparece num café, outro cigarro destroça-se ao cair na sarjeta. Uma garrafa de cerveja meia cheia aparece abandonada numa mesa solitária de uma esplanada vermelho debotado, o seu bebedor desapareceu, lembrou-se que tinha que fazer outra coisa que não esconder as cadeiras do sol e foi-se embora deixando os despojos. Engole-se para dentro, esconde-se, esquece-se, a fala; o que se pensa; o que se sente; traga-se a vida em escolhas com os ossos gelados e as faces rubras. Escorrem as angustias com que cobrimos a pele, escondem-se os ossos à vista com trapos rasgados de vestidos azul glaciar, tapam-se os olhos com as pedras da calçada de modo a que só se veja o sangue que deles escorre e tapa-los já não faça sentido e as mãos caídas, dos braços caídos, perdem as sombras do futuro entre os dedos, caídos.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

terça-feira, 18 de junho de 2013

terça-feira, 4 de junho de 2013

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Old thin white duke still has some tricks

a pôr dedos nas feridas

terça-feira, 23 de abril de 2013

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Deste escrito ali lido, GCI



Acabo de ler um livro para logo começar outro, o que não faz sentido num país que não lê, mas ler para logo começar outro é como ler apenas um enorme livro, é não ler. Na verdade parece-me que não leio, pelo menos livros, leio apenas. É como escrever, escreve-se treinando a mão a ser o cérebro, sem ter o corpo pelo meio ou a consciência de que se escreve, é ligação directa como roubar um carro, é um assalto ao pensamento sem consciência de roubar ou ser roubado. É como o amor, o liquido, para quê ter trabalho, se tudo pode ser conseguido sem trabalho, o sexo, o carinho, a cama, o corpo, e o amor? O amor talvez seja como ler livros sem parar de ler, parece-me não um sacrifício, ler, mas isso deve ser pelo treino, escrever com a mão é muito mais complicado, implica treino. É como o amor, implica treino e insistir, ler não, implica apenas respirar, e o amor é isso é apenas respirar, depois de muito ler, é um acto contínuo sem principio, meio ou fim, é a biblioteca impossível de Borges. E a minha tia passou com dois cães ridículos segurando a trela, que parecia de cavalo, e portanto não um trela mas estribos, e uns sapatos de leopardo. Mas a minha tia não usa sapatados de leopardo, ou de tigre ou de qualquer outro grande felino, o que ainda nos dá a hipótese de usar sapatos de gato, mas assim seria ou assaltante ou escalador, que me parece que com este sol seria impossível, que embora arda como o fogo do inferno está um vento que o apaga. O vento apaga o sol e o meu tio não era o meu tio, que o meu tio não tem uma tonsura de bispo e uns óculos de cardeal, na verdade nem usa óculos. Mas o cabelo é o da minha tia, talvez a senhora o tenha roubado à minha tia. É preciso ver se a minha tia está careca, só para saber se o sol está quente ou se o vento está frio. É como o amor, quente e frio, mais quente ou mais frio dependendo de quanto se lê um novelo, ou será novela, sem fim. Um autêntico mantra de carícias exigentes e com todo o sentido, afinal de contas liquido era o amor, se não se lesse sempre o mesmo livro.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Fome


As the snow flies
On a cold and grey Chicago morn
A poor little baby child is born in the ghetto

And his mama cries
Cause there's one thing that she don't need
Is another little hungry mouth to feed in the ghetto

(...)

Then one night in desperation
The young man breaks away
He buys a gun and steals a car
He tries to run but he don't get far

And his mama cries
A crowd gathers round an angry young man
Face down in the street with a gun in his hand in the ghetto

And as her young man dies
On a cold and grey Chicago morn
Another little baby child is born in the ghetto