domingo, 7 de dezembro de 2014

And then the veins stand out like highways

cada passo fazia um baque distintivo no chão, os dela mais finos e audíveis, os dele mais secos e curtos, ambos calçavam botas com sola de madeira. Ela usava as botas por fora das calças, protegendo-as de ficar empapadas, ele, botins, que se deixavam notar enquanto o tecido escurecia e com o peso da chuva se colava ao cano da bota. Os passos, embora não medidos, eram lentos, não fugiam da, pouca, chuva que caía, fugiam deles mesmos e nessa fuga cada passo aproximava-se do chão a disparar salpicos para todos os lados. O passeio apresentava pequenos lagos, uns ligados por rios que espelhavam a chuva, deformando-se em ondas circulares, tornando negro o tapete já de si cinzento escuro. As botas aterravam no chão com uma solidez nada expectável para quem não costuma andar à chuva, ela pousava a ponta e só depois o tacão, ele calcava com o tacão e deixava cair a biqueira que se dobrava para dar origem a um novo passo. Ao principio quase não chovia, era cacimbo só, uma neblina baixa e espessa, ainda não nevoeiro, mais líquida. Tinham acabado de jantar e o silêncio fez com que ela perguntasse se não queria dar uma volta, que ainda não chovia. Ele assentiu com um "se quiseres". Vestiram casacos de algodão pesado, o dela de um rosa velho, esbatido, o dele azul marinho, quase cinzento, com um bolso embutido para os cigarros ao nível da cintura. Dez passos após terem saído começou a pingar, não falaram, não demonstraram, sequer, que tinham noção que começava a chover, continuaram simplesmente a andar como se tivessem destino, embora o destino não pudesse ser mais do que chegar ao velho forte quinhentista e voltar pelo mesmo caminho, sob pena de, se fossem por outro lado, passarem por uma rua mais iluminada e com um punhado de entes nos cafés, algo que não suportariam, a consciência de se sentirem envergonhados pela deterioração de comunicação seria demasiado impeditiva para que não tivessem que fingir à luz diáfana dos candeeiros de rua. Jantaram calmamente, beberam um garrafa de vinho e a nenhum dos dois apetecia-lhe sair. A decisão foi tomada não por vontade mas por medo da alternativa, zapping incessante entre programas noticiosos, computadores abertos, redes sociais, e-mails de trabalho e silêncio, com um ocasional cigarro e, talvez, a sorte de um copo de whisky partilhado que permitiria proferir "queres?", "obrigada", "não". Saíram para fugir ao destino da noite, substituindo o cansaço mental da incomunicabilidade pelo cansaço físico que pouco espaço daria às almofadas do sofá, ocupados que estariam em despir-se, fumar mais um cigarro em pé a ver se alguma notícia importantíssima lhes tinha escapado, o que de resto era uma estupidez pois ao mínimo sinal de relevância noticiosa o telefone de algum deles já tinha tocado, e ir para a cama, onde o silêncio não seria menor mas teria a justificação de que era necessário dormir. Avançavam para aquele destino circular e ela tentou falar, perguntou qualquer coisa sobre o dia, que ele tinha saído a meio da tarde e ela não sabia para onde. Obteve uma resposta curta e seca, sem ele se dar conta que era uma resposta como um eucalipto. Ela calou-se e arrependeu-se de ter falado, ele pensou que já não conseguiam conversar porque a ela não lhe interessava o que ele tivesse a dizer. Quanto mais avançavam mais a chuva se avolumava, voltar para trás era irrelevante, já que ficariam encharcados de qualquer maneira, mais valia continuarem com o plano. Nenhum dos dois queria ter mais um acto falhado que os devolvesse ao habitual com o peso que isso proporcionava, e, ainda mais, com o facto de este puder ser a gota que faz transbordar o copo e os enviar para mais uma discussão sem fim onde a destruição estava sempre assegurada e da qual não conseguiam sair, nem, incólumes nem com alguma espécie de decisão de ordem prática. Passaram pelo café a meio do caminho, que mais uma vez apresentava as suas cores esbranquiçadas e uma luz quase negra, onde estariam não mais do que três mesas ocupadas e não mais que sete clientes. Ele pensou em parar para tomar um café, mas sabia que ela não era favorável a cafés à noite, principalmente após já terem tomado um em casa, pelo que não lhe disse nada. Ela esteve quase para lhe dizer para tomarem um café, não que lhe apetecesse o café em si, aliás não o tomaria, pediria uma água com gás ou algo do género, mas para poder sair por uns momentos da chuva, mas como sabia que ele gostava de tomar café e não disse nada é porque não lhe apetecia parar e não queria que ele fosse ao café só para lhe fazer a vontade, como lhe parecia que tantas vezes fazia, com as consequências disso a serem mais desconfortáveis que a chuva. Do café, um casal ficou a olhar para os dois vultos que passavam com trinta centímetros de distância entre eles e a pensar porque raio alguém andaria à chuva naquela direcção, uma vez que não pareciam pescadores e nem canas carregavam.
viste? vi. Quem era? não sei, está demasiado escuro. Pescadores? com este tempo os pescadores não pescam nestas rochas. Estranho!
A mente dele desprendeu-se, entrara no café e ficara a perscrutar quem seria que estava no café, de quando em quando ia ali tomar café depois de jantar, normalmente sozinho uma vez que a ela raramente lhe apetecia sair, para a encontrar, depois, já no sofá, estendida, e sem lhe perguntar nada sobre a sua saída. Ela pensava que podiam ter entrado, que como não tinha sido ele a perguntar talvez percebesse porque é que ele saía tantas vezes para tomar café, se estaria lá alguém que pudesse ser o motivo dessas saídas.
O chão dali para diante tinha um certo declínio que lhe permitia apresentar uma superfície luzidia mas sem água acumulada. Adaptaram o passo para não escorregar, ele com mais dificuldade que ela, talvez pela maneira de pisar, e continuaram até encontrarem o lago para onde a água fugira. Ele estendeu a mão, para a ajudar, que ela não viu e o fez recolhê-la com um gesto de desalento, voltando à silhueta individual. Enquanto a mão perorava no ar ficou a pensar porque é que ela escolheu o casaco rosa, estava a chover, o verde escuro ficava por certo melhor. Não percebia essa escolha, como tantas outras, não se usa calças brancas no inverno, por certo também não se usaria casacos rosa claro quando o céu se apresenta fechado, essa escolha ficaria confinada aos dias frios mas sem nuvens, aqueles em que o céu se apresenta limpo e um sol frio reino, onde o calor vem de outros lados, como de casacos rosa, e por certo que aquelas botas não seriam as mais confortáveis, embora a esse respeito tivesse mais dúvidas, poderia-se dar o acaso de que as botas com o tacão mais alto fossem as mais confortáveis. Ficava contente por estar com aquelas botas calçadas, sólidas e confortáveis, aquelas botas que pensava sempre que eram ferradas por terem uma costura por baixo na sola, a coser pele à base. Sempre que as calçava ficava com a sensação de ser um cavalheiro de outros tempos, algo entre um cavaleiro e um tipo daqueles que não tem amarras ao presente e mira o pôr-do-sol como destino, montado numa mota potente ou num barco à vela em direcção a Veneza. Ela, num vislumbre, seguiu o braço dele em trajectória descendente, tendo demorado um segundo a entender o movimento e ficando com a sensação que se tinha apercebido demasiado tarde. Não disse nem fez qualquer gesto, passando a poça com agilidade, contente com a sua independência de não precisar do braço dele para ultrapassar aquele simples obstáculo. No mar, muito depois das ondas rebentarem, pequenos barcos ardiam no firmamento.

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