terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Begin, murderer. Pox, leave thy damnable faces, and begin! Come, the croaking raven doth bellow for revenge.

No dia 17 de Novembro senti sangue na garganta. Há quatro anos Novembro foi, particularmente, frio, talvez por isso o sangue, e eu estava no inicio deste caminho que acabei por seguir, sem saber. Saía cada vez menos, comprar cigarros, tomar café, ler o jornal, ir às compras, mais ao menos por ordem de frequência, sendo que cigarros e café eram muitas vezes frequências acumuladas, assim como com o jornal, sendo que com as compras a maior correlação eram os cigarros, embora não raras vezes também tomasse café. Desse tempo recordo que ainda resolvi uns problemas em balcões de lojas e dos correios, na sua maioria problemas com contas ou artigos defeituosos, uma torradeira que começou a deitar fumo passado duas semanas, e às terceiras torradas que lhe punha, de a ter comprado ou uns problemas com o débito automática no banco das contas do telefone e luz. Por essa altura, comecei a comprar de forma mais organizada, talvez mais automática seja melhor definição, pois de organizado nunca tive nada, sem fugir muito do cabaz de semana para semana. Em retrospectiva diria que estava a afinar uma receita de sobrevivência, com cálculos elaborados, embora inconscientes, de duração dos produtos e combinações dois a dois e três a três, que foi ao que acabei por reduzir a minha perícia na cozinha. No inverso dessa disciplina estavam as compras de vinho, gin e whisky, aí foi o consumo que teve que começar a ser mais disciplinado, mas isso já numa fase posterior e com pouco de inconsciente, fruto de restrições exógenas. A verdade é que me assustei com o sabor a ferro na boca, ainda pensei que seria um dente mas depois de passar a língua pela fileira dos ditos não consegui localizar a fonte o que me levou, com a prática de catarro de fumador, a fazer uma convulsão, para que os fluídos na garganta regressassem à boca, com o ferro a inundar a boca como se tivesse acabado de levar um murro nos dentes. Cuspi para o lavatório e a minha saliva apresentava-se de um escuro sanguinolento. Passei a boca por água, voltei a cuspir e o lavatório devolvia-me um lago rosa com fios mais escuros. Olhei-me ao espelho e voltei a repetir o processo, o sabor a ferro, quase terroso, era já menos intenso; cuspi e nada do que se tinha passado se voltava a repetir, apenas uns farrapos escarlates que nem tingiam a água, de forma considerável, passei a boca por água, bocejei, deixei sair o líquido
- isso ainda te mata
e dei o processo por satisfeito, olhando o espelho a esperar que me respondesse se me deveria preocupar e ir ao médico ou se era apenas mais um sinal de uma máquina demasiado complicada para eu a compreender. Não me doía a garganta, ou pelo menos não mais do que o normal, o sangue tinha passado sem eu conseguir realmente identificar de onde é que ele vinha, assim como assim poderia ter sido de alguma coisa que eu tinha comido, ou uma veiazita que não tivesse gostado dos copos da noite anterior e tivesse resolvido alertar-me para o facto. Lavei os dentes, num reflexo de que a higiene oral faz parte de não termos razões para ir ao médico, olhei o espelho, ele continuou mudo, pensei que estas coisas aconteciam e que se voltasse a repetir talvez devesse procurar ajuda e fui para a cozinha fazer um café e acender um cigarro. Se fosse algo de grave, de certeza que, daria sinal com as agressões matutinas, não deu e portanto não voltei a pensar nisso até agora.
- essa merda vai acabar por te matar
Nesse dia, lembro-me, talvez pelo sangue, que percebi pela primeira vez que as compras que fazia davam-me precisamente para uma semana, sem ter que me maçar de novo em voltar ao supermercado. Quando cheguei a casa, com as compras, ainda, em cima da mesa da cozinha, sentei-me no parapeito da janela, com as pernas do lado de fora a olhar as pessoas que passavam na rua. Fiquei um bocado parado, sentindo o frio do alumínio nas costas, enquanto pensava o que significava saber que as compras nos davam para uma semana, que raio de vida é essa em que sabemos exactamente que as compras nos dão para sete dias, nem mais nem menos, o que também é falso, como depois se veio a provar. Sentia o frio do Inverno a aproximar-se, a senhora do telejornal tinha dito que correntes polares se aproximavam da região continental, na cara que parecia encolher de frio e na mão que perdia cada vez mais sensibilidade. Atirei o cigarro para o passeio da frente e estudei a trajectória dele a cair, um quarto de elipse, meia curva de gauss com a ajuda do vento. A queda do cigarro não perturbou ninguém que passava, tinha-lhes sido indiferente e nem barulho fez, ou pelo menos que eu notasse, pelo que considerei que era melhor levantar-me dali e ir arrumar as compras nos seus devidos sítios e não esperar por ter que lavar a loiça para fazer tudo ao mesmo tempo, visto que tinha carne e por muito que pensasse que a temperatura estava baixa, supunha que não tão baixa assim.
Olhando do dia de hoje, 27 de Fevereiro, percebo que aquele dia foi especialmente importante nestes quatros anos que se passaram, precisando quatros anos, três meses e dez dias, por terem aberto um caminho que na altura não parecia possível. O resto do mês de Novembro teve pouco de diferente dos meses que lhe precederam, cada vez saía por menos tempo, descia para tomar um café e fumava o cigarro em casa, não passando mais do que cinco minutos a folhear o jornal enquanto bebericava o expresso, o que acaba por ser das coisas que mais sinto falta hoje em dia, não o jornal ou o tempo no café, mas tomar um expresso em quatro goles faz-me uma falta desgraçada, aliás, tomar um expresso faz-me uma falta desgraçada, já pensei, até, em comprar uma máquina mas a qualidade dos cafés dessas máquinas de pastilhas é completamente diferente de um tirado com café moído pouco tempo antes, sendo que este pouco tempo poderá sempre variar um bocado, mas nunca exceder os dois dias, com a temperatura de água correcta, que só se obtém após muitos cafés tirados para pessoas a correr os tomarem em pé ao balcão e dizerem, está aqui o dinheiro, apontando com o dedo enquanto já dão meia volta para voltarem ao seu dia de trabalho que na generalidade dizem trocar facilmente por ficarem em casa sem fazer nada, e comprar uma a sério parece que me transformaria num excêntrico em vez de apenas esquisito. Comecei a comprar maços de cigarros no plural, para não ter que voltar à rua todos os dias, e a pensar que poderia encomendar comida do supermercado que eles me entregariam à porta, o que felizmente, ainda, demorou três meses a acontecer, aliás, só aconteceu após ter percebido que também podia encomendar volumes de uma tabacaria e que eles me entregavam em casa. Até ao Natal desse ano ainda fui a uns quantos jantares com amigos, tendo, depois, recusado todos os jantares, ditos, de Natal, com umas desculpas esfarrapadas de que tinha muito que fazer ou que não estava no país nessas datas. Creio que ninguém acreditou muito nas minhas escusas mal disfarçadas mas também não me chatearam particularmente, não mais do que um "anda lá", "devias vir", "gostávamos que viesses", tinham-se habituado, nos anos anteriores que eu não estivesse presente, e embora a situação fosse, diferente não fizeram caso.

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