quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

I can see the darkness, through the cracks

a noite abatia-se e com ela o frio a penetrar nos ossos. Uma mão, quase dormente, pendurava um cigarro da meia noite. Da janela do primeiro andar era impossível vê-los no passeio a olhar o mar, apenas um ponto vermelho. Dois casacos compridos e o cabelo levado pelo vento, duas figuras a preto e branco de costas para o mundo. Não falavam, ocupados a ver as ondas a esmagarem-se contra os rochedos. Dois mundos que não se tocavam unidos por um mar furioso. Ela fitava a espuma que se precipitava abandonada depois do embate, ele fumava um cigarro em que se comprimia o desejo de se enfiar dentro de água. O nevoeiro envolvia-os como um cobertor húmido que cortava as feições. Calados, sempre calados, as mãos dela escondidas; as dele, cada vez mais roxas, esqueciam a temperatura. De longe a longe um carro passava a alta velocidade para logo a estrada ficar vazia e apenas se notar o neblina a correr nos candeeiros. Tinham percorrido a marginal como se tentassem libertar-se de uma ameaça que os perseguia, cruzando a chuva rala que caía como se ela não existisse. A única coisa que comunicava entre eles era o barulho que o isqueiro dele fazia quando acendia um cigarro. O dia tinha-se afundado naquela margem de oceano e a noite imperava com o tom lilás que certas noites adquirem quando querem mostrar uma lua submersa de nuvens. A má iluminação noturna mostrava duas figuras a avançar com os casacos abertos pelo vento e as botas cada vez mais escuras de água. Quando resolveram parar, ainda chovia, e pelas faces rolavam pequenas gotas de água que os percorriam até ao peito. Tinham, já, passado o ponto em que o frio, ou a água, os incomodava, em que o abismo que as suas sombras projectavam tinha importância, que a ausência não se tinha tornado parte do caminho percorrido. Existia uma clausura que não parecia partir pela intemperie, uma dor que eles queriam quebrar pelo sofrimento infligido e que se transformava numa constante torturante. Os precipícios dentro de cada um deles berravam mais alto que as ondas a quebrarem, que o mar a galgar a praia, furioso, até quase os atingir no passeio, mas nenhum deles conseguia ouvir o outro, eram como dois barcos no meio das vagas sem conseguirem comunicar, fustigados pelo vento e pela chuva, tornados cegos pelo nevoeiro, a cruzarem irremediavelmente a espuma até aos rochedos lhes abrirem os cascos e sangrarem a asfixia de permanecerem imóveis sem que do primeiro andar alguém os conseguisse ouvir ou avisar que o farol se apagou, que o faroleiro ficou bêbado e tombou no café sem activar a luz, que aqui os espinhos não rasgam a pele, alojam-se e criam gangrena, escondidos na carne, até que a infecção se veja nos olhos e mais não consigam que os fechar, a arder de uma febre da qual não se conseguem libertar.

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