sábado, 6 de junho de 2015

a kind of...

Quando cheguei tudo me era desconhecido e depois como um puzzle as peças foram-me construindo a lembrança. Os pedaços eram colocados com a maior urgência, como pela mão de um gigante biónico que começa por fazer os cantos, para logo passar às bordas, como me dizem que se fazem puzzles, na mesma ordem com que se coze um ovo, primeiro a clara passa do seu estado de placenta para a rigidez plástica do branco e, só depois, a gema começa, languidamente, a enrijecer, sem esquecer o seu estado de compota. O gigante ia atirando as peças para os seus lugar correctos e eu reconhecendo-os com uma familiaridade assombrosa. Primeiro a rua que sobe, o bar que ainda hoje me parece ter levado um chuto que o deslocou umas casas para cima, um agora motel, onde antes era apenas pensão de putas à qual não dei muita atenção. Hoje é impossível não prestar atenção, em todas as janelas letreiros a dizer motel. O gigante continuava a atirar peças a uma velocidade estonteante, e, eu, após seis anos via a geografia do local com cores technicolor. O botéco da esquina agora serve "portuguese tipical food", antes era um pardieiro de copos cheios até transbordar, a rua sobe incrivelmente, não sei como a trilhei antes sem sentir o seu declive. A encimar continua o restaurante com mercearia à entrada, só serve a uns quantos é verdade, por iniciativa própria só compraria cogumelos secos e fugia dali para fora como acometido por uma doença contagiosa qualquer. Reparaste que antes tem um bar de meninas que dançam a partir das seis da tarde? Deve ser por isso que tem lá o motel, uma coisa leva à outra e não há lenocínio para ninguém, tudo dentro das vontades adultas e consentidas, afinal de contas o acto de consumo é algo que a sociedade actual enquadra melhor se feito por adultos. O restaurante continua igual, pelo menos de fora, não entrei. Nem fazia sentido. à frente tem um hotel, sabias? eu não, não o vi, aliás continuo com a sensação que não vi nada, embora guie a mão do ser que põe as peças. é tudo muito estranho e vivido, demasiado vivido até, parece que afinal o gigante não é biónico mas o Kubrcik e nada disto é muito real. Não fosse a minha ida aqueles bancos junto ao rio, à estátua que parece um grupo de gente desenhada pelo Munoz, e o café que serve tostas mistas, o que em Portugal não parece estranho, não acreditaria em nada disto. Não visse o carro bordô estacionado e os momentos antes da partida e juraria que é tudo falso, que o restaurante não existia, que não sabia se tem ou não mercearia, que o clube não mudou de sitio, que o parque de estacionamento não teve um teatro, que não existiram iogurtes de madrugada, que o calor era tanto que nos sentíamos embriagados, que se discutiam livros e loucuras em las vegas, que se falava nas mais inusitadas situações como obrigação. Negaria tudo e mandava o gajo à fava, mas tenho um medo terrível de não conseguir completar o puzzle.   

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